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UM PEDIDO DE SOCORRO UM TANTO SUSPEITO

 

Valentim, Clarice e Vivaldo resolveram montar uma transportadora. Logo apareceu um primeiro cliente, uma empresa de mineração, queria transportar pedras brutas. Vivaldo não gostou:

“-Ahh, justo esse cliente? Isso eu não quero. Pedra bruta é muito difícil de carregar e descarregar. Também estraga os caminhões, o peso é muito concentrado.” Clarice e Valentim concordaram.

Apareceu outro cliente, uma fábrica de geladeiras. Também não agradou:

“-Geladeira é uma máquina grande que não pesa nada. Para transportar aquele volume todo você recebe quase nada, pois o peso é baixo. Assim não dá.”

A estorinha parecia absurda até a semana passada. Então José María Álvarez-Pellette, presidente mundial da Telefónica de España, divulgou uma carta reivindicando um marco legal do setor para todos os países da União Europeia. A proposta é de que as chamadas big techs sejam obrigadas a bancarem parte da infraestrutura de telecomunicações. De acordo com o site Tele.Síntese, na carta consta que “… hoje, streaming de vídeo, jogos e mídias sociais originados em algumas poucas plataformas de conteúdo representam 70% do tráfego que circula em nossas redes”.

Olha só o que virou o sonho da Internet! Cultura? Ciência? Educação? Intercâmbio empresarial? Há 30 anos os jornais apresentavam a grande rede mundial de computadores como algo “tão fantástico, que pode levar um internauta ao Museu do Louvre, para contemplar a Monalisa.” Se tivessem anunciado o Super Mario Kart o sucesso chegaria bem antes.

É, o mundo web chegou mesmo para virar tudo de cabeça pra baixo. Talvez a lógica das teles europeias se encaixe nisso. Não foi apenas a Telefónica que assinou a carta. Ela conseguiu as assinaturas também de Tom Höttges (Deutsche Telekom), Nick Read (Vodafone) e Stéphane Richard (Orange), todos heads das respectivas empresas. Portanto, quem achou que a Telefónica (Vivo), tão mal acostumada com as facilidades aqui do Brasil, tivesse surtado, precisa considerar agora os outros signatários. A carta tem um tom dramático. As teles europeias afirmam que o crescimento exponencial do tráfego de dados no continente não é sustentável: “O resultado é que não conseguimos ter um retorno viável do nosso alto investimento, colocando em risco o desenvolvimento de nova infraestrutura”. Para elas, “o fardo do investimento tem de ser dividido de forma mais proporcional”. Seria o único meio “… para atender às metas de conectividade definidas para 2030 pela Comissão Europeia.”

As teles foram buscar exemplos nos confins do planeta. Na Coreia do Norte, onde a série “Round Six” estaria sufocando o sistema, os reguladores teriam contatado as big techs pedindo a expansão da rede. Também segundo as teles europeias, nos Estados Unidos a tendência é de que as grandes plataformas banquem o serviço de acesso universal. A carta transparece ainda algum inconformismo, aparentemente a partir dos cotovelos das empresas. Elas citam os modelos de negócios das big techs, gerados a custos baixíssimos para um retorno monumental, “… ao mesmo tempo, o varejo de telecomunicações está em declínio perpétuo quanto à lucratividade”. Será mesmo? Só aqui no Brasil a Vivo teve lucro de R$ 6,2 bilhões em 2021.

Um detalhe da carta chama atenção para o que pode ser o real propósito dessa mobilização. Está na afirmação de que, “sem um ‘preço’ para a emissão de dados, o incentivo para grandes provedores de conteúdo otimizarem seu tráfego de dados permanecerá baixo”. De fato, se o provedor tivesse de pagar pela emissão dos dados, a cada vez que alguém baixasse um filme ou outro conteúdo com tamanho (em bits) acima de determinado limite, as teles não teriam do que reclamar. Talvez seja essa a real reivindicação da carta. Só não foi dita com todas as letras pois, obviamente, essa conta vai acabar caindo no bolso do consumidor final. Em outras palavras, onerar o cliente, tudo bem. Desde que o valor não chegue pela fatura das teles. Que chegue na conta do Netflix, por exemplo, que então pagaria para as operadoras. É o marketing das teles que leva a essa conclusão. As propagandas são feitas em cima exatamente de filmes, séries, jogos e redes sociais. Com franquias de dados altíssimas. É o que enche os olhos dos clientes. E é exatamente o conteúdo dos provedores dos quais elas reclamam na carta. A ideia, nesse caso, seria ganhar nas duas pontas. Se não for esse o interesse, a carta pode ficar parecendo uma oferta pública, para as big techs, dos ativos das operadoras.

Essas novidades neste admirável mundo novo precisam ser avaliadas com cuidado. Não dá pra lacrar em cima de qualquer hipótese. Porém, no geral, entrega acontece na base do FOB (Free On Board) ou CIF (Cost, Insurance and Freight). Receber dos dois lados é um sonho antigo das teles, desde os primórdios do celular. Elas já cobraram até de quem recebia chamadas.

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