sexta-feira, 09 de agosto de 2019
Pode ter mudado muito. Mas em alguns círculos a adolescência ainda acontece daquele mesmo jeito. Por exemplo, o garoto apaixonado. Ele já trocou olhares com a pretendida, tentou alguma gracinha que não foi bem recebida. Até que percebe não ter todo o tempo do mundo, então faz um plano. Na próxima festa da escola, num determinado momento, vai convida-la para alguma brincadeira da gincana, para dançar, algo assim. Ele sabe que ela deve resistir, então planeja uma resposta para cada possível negativa.
Chega o grande dia, veste a melhor roupa, faz pose de galã e, antes que se aproxime dela, é a menina que sorri e o convida pra dançar. Ele não sabe o que fazer da sorte com a qual nem sonhou.
Para adolescentes é aceitável. Para um país como o Brasil, nunca. Se somos uma democracia adolescente, como alguns dizem, com certeza somos mais ainda uma burocracia obsolescente. Como a nossa idosa “bisa”, confusa, que nos pede algo e, quando trazemos, ela pergunta por que lhe entregamos aquilo.
O caso concreto é o FUST – Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. Um imposto que nos é cobrado indiretamente desde 2001 e que, até o último mês de abril, acumulava uma arrecadação de R$ 22 bilhões. Como o próprio nome diz, ele deveria ser utilizado para universalizar os serviços de telecomunicações, ou seja, leva-los até os locais mais distantes e isolados do país. No entanto o senador Styvenson Valentim (Pode-RN), em relatório apresentado no ano passado, cita uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). A auditoria, referente ao período de 2001 a 2016, concluiu que menos de 0,002% dos recursos do fundo teriam sido utilizados na universalização dos serviços de telecomunicações. Há outras estimativas, nenhuma chega a 1,5%.
Se faz tempo que você ouve governos dizerem que “não tem dinheiro”, agora você entende o que pode ser essa tal “adolescência” do país. Os gestores ficam perdidos, não sabem o que fazer quando têm recursos disponíveis. Planejam com base num cenário muito diferente da realidade. Ou, para usar mais do universo adolescente, é quase aquela piada que aparecia em adesivos colados no vidro de fuscas reformados: “Arrecadar nóis arrecada, mas nóis num breca a cobrança”.
A CULPA É DA TECNOLOGIA
Para quem nunca teve R$ 22 bilhões em mãos é bom fazer algumas comparações, para se ter ideia do quanto representa esse valor. É mais do que o orçamento de todo este ano para estados como Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Ceará, Acre, Paraíba e para a maioria dos estados brasileiros. Ou então, mais do que o dobro do custo de todo o Congresso Nacional em 2019, incluindo benefícios e todas as mordomias de cada parlamentar, de servidores.
E agora são eles mesmos, deputados e senadores, que sonham em utilizar os recursos do FUST em projetos que podem dar projeção política e eleitoral. Enquanto isso, o dinheiro do fundo tapa buracos no orçamento e trapalhadas de Brasília. No ano passado, por ocasião da greve dos caminhoneiros, o Governo Temer usou R$ 777 milhões do FUST para subsidiar os preços do diesel. Pelo menos R$ 10 bilhões do fundo já teriam sido usados sob a rubrica “nada a ver”. E o povo reclamando que é a conta de telefone que está alta.
Na verdade, os desvios do fundo, feitos com base em leis para situações de desespero, têm raízes burocráticas. E tecnológicas! Sim, a rapidez da evolução dos sistemas de telecomunicações fez até as leis do setor se tornarem anacrônicas. No caso do FUST, quando ele foi criado, no ano 2000, era para levar linhas de telefone fixo para locais remotos. O bom e velho telefone representava quase tudo em termos de serviço essencial de telecomunicação. Internet era um luxo, para diletantes. Banda larga era só um tipo de pneu para carros esportivos.
A Lei Geral das Telecomunicações, ou LGT, é de 1997 e trouxe muitas regulamentações no bojo das próprias diretrizes. Foi uma lei completa porém, para um cenário que nunca se confirmou. Seria impossível alguém prever tantas mudanças de hábitos, em tão curto espaço de tempo, por conta da tecnologia.
O mais estranho é que, afinal, as coisas já aconteceram, o mundo mudou. E os gestores públicos continuam atônitos, como o adolescente surpreendido pela sorte que o tempo lhe antecipou, muito além dos seus melhores planos. Se, ainda assim não agem com base na nova realidade, talvez estejam vislumbrando interesses inconfessáveis nas entrelinhas da história.
O TOMA LÁ E O DÁ CÁ
Ao que parece o FUST foi criado como uma providência estratégica. As telecomunicações, fundamentais na sociedade contemporânea, estavam deixando definitivamente a mão generosa do estado, para serem entregues à gestão de empresas privadas estrangeiras. A lógica do lucro precisaria de um amplo contrato para garantir, à parte mais carente da sociedade, aquilo que o estado se desincumbia.
A interligação nacional do sistema, que transferia recursos dos estados ricos para investir no desenvolvimento dos estados mais pobres, estava se decompondo entre empresas independentes. E o FUST foi a solução proposta para garantir os investimentos que precisavam chegar a todos os brasileiros, em todas as regiões.
Para que isso acontecesse de forma organizada foi criado o PGMU – Plano Geral de Metas para a Universalização, voltado ao Serviço Telefônico Fixo Comutado (SFTC). As siglas são muitas, mas vão ajudar a compreender o contexto legal que está originando esses problemas.
O telefone fixo (SFTC) era o único serviço previsto na LGT com o status de regime público. Esse status só é admitido para serviços essenciais, “de interesse coletivo, cuja existência, universalização e continuidade a própria União comprometa-se a assegurar.” Significa que precisam ser, pelo menos em parte, concedidos pela União a empresas que se comprometam, inclusive, com metas de universalização.
Hoje o telefone fixo é a modalidade de comunicação de menor interesse para a população em geral. O mais importante parece ser o serviço de banda larga, que ainda não poderia receber verbas do FUST. Para isso, seria necessário que o serviço de banda larga constasse do PGMU. No PGMU só podem constar serviços em regime público e, de acordo com a lei, isso exigiria que pelo menos parte do serviço precisa ser concessão da União. Já imaginou o Governo Federal abrir uma concorrência pública para concessão de serviços de banda larga? Considere que a empresa vencedora teria de assinar um contrato com várias obrigações, prevendo também investimentos para universalização da banda larga.
É isso que congela os R$ 22 bilhões que o FUST arrecadou. Só mudando a LGT esse dinheiro poderia ser posto a serviço da real necessidade nacional, que é a universalização da banda larga. Agora o problema é que a mudança da LGT foi proposta pelo PLC 79, que está parado no Senado há cerca de 3 anos. O PLC 79 é polêmico, pois ali, diz a oposição, estariam embarcados diversos “presentes” da União para as atuais empresas concessionárias de SFTC. Convém avaliar cuidadosamente.
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