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QUANDO OS NÚMEROS NÃO CONVENCEM

O vídeo esteve circulando na Internet há pouco tempo. Um vendedor convence um rapaz que determinada película transparente torna o celular resistente à marteladas. Ele apresenta um celular que teria sido revestido pela tal película, pega um martelo debaixo do balcão e dá algumas marteladas sobre o aparelho, que continua intacto, funcionando. A sequência da postagem traz o rapaz numa mesa de bar, com seu celular revestido, desafiando um amigo da mesa a bater forte com a garrafa de cerveja sobre o delicado handset. O amigo não aceita o desafio mas, diante da insistência, acaba socando o casco da cerveja sobre o aparelho. O celular se quebra por inteiro e para de funcionar.

O que precisa acontecer para demonstrar “de forma concreta” algo que contradiz o seu próprio bom senso? Parece que algumas pessoas, como o rapaz do celular “blindado”, nem são tão exigentes assim.

As “teles”, as quatro grandes operadoras de telefonia móvel no Brasil, podem ser consideradas suspeitas em suas promessas. Há anos ininterruptos estão invictas nos procons de todo país, como as campeãs de reclamações. Num levantamento feito até 2018, já tinham acumulado R$ 7 bilhões em multas aplicadas pela Anatel por má prestação de serviços. O valor se referia ao período de existência da agência até então. Ela foi criada em 1997, na privatização da telefonia. O levantamento apontou ainda que só 12% do valor das multas haviam sido pagos.

A conclusão oficial sobre esses fatos é no mínimo curiosa: “- O sistema de multas não deu certo. A Anatel multa, as teles não pagam, continuam atendendo mal, a Anatel multa de novo e elas, ainda assim, não pagam.” Embora a agência disponha de outros instrumentos, incluindo eventual intervenção nas empresas, governos se recusam a usa-los. Deve ter sido por isso que a Oi acabou pedindo uma recuperação judicial só quando devia R$ 62 bilhões na praça. A dívida total mostra que não era só a Anatel que sofria com falhas da pela empresa.

E então, como proceder diante de falhas reiteradas das empresas? Ora, já que os petelecos no Luisinho não surtiram efeito, que tal ter uma boa conversa e dar mais carinho pra ele? O nome disso no plano federal é “ação regulatória responsiva”. Já é usada para os bancos. Quem está criando o modelo para telefonia são as próprias teles. A avalição da qualidade dos serviços delas, por exemplo, deve passar a ser feita por empresas independentes que elas mesmas, as teles, vão contratar. A medida extrema vai ser baseada na figura jurídica da “obrigação de fazer”. No caso, a Anatel converte o valor de multas em obras de infraestrutura que a empresa punida(??) vai ter de fazer. Por exemplo, levar algum novo recurso para uma localidade, indicada pela agência. Acontece que esses investimentos, de alguma forma, já estariam previstos como obrigatórios, desde a privatização do sistema. À época, foram criados planos de metas, prevendo investimentos que as, então concessionárias, teriam de fazer ano a ano, até que se chegasse à total disponibilidade de telefones no Brasil. Sim, em 1997, o horizonte da cidadania era telefone para todos. Hoje a perspectiva é outra, a Internet é a representação máxima da inclusão.

E não é que já tem gente comemorando o sucesso da “regulação responsiva” no setor? Na semana passa, um conselheiro da agência citou um primeiro caso que “… demonstra de forma concreta, como a utilização de novas ações regulatórias, como obrigação de fazer, podem resultar em entregas imediatas para a sociedade.” De acordo com o site Teletime o caso envolvia uma multa de R$ 421 mil contra a Tim. O valor da multa foi “reformulado” em R$ 134 mil, acrescida da obrigação de fazer o upgrade do 3G para o 4G no município gaúcho de Arroio do Padre, obra que teria custado R$ 230 mil.

Considerar que esse fato “demonstra de forma concreta” vantagens para a sociedade, lembra a demonstração de eficiência do celular blindado para o rapaz que desafiou os amigos. A ordem de grandeza entre a reformulação da multa e o total de multas é discrepante, como demonstram os zeros: de R$ 421.000,00 para R$ 6.000.000.000,00 (valor das multas que não foram pagas). O primeiro caso de reformulação, que demorou meses para ser concluído, precisaria se repetir cerca de 1.500 vezes, só para quitar as multas não pagas, sem contar as que virão. Ademais, trata-se de um investimento da operadora. Vai retornar pelo pagamento dos serviços doravante.

A propósito, outro fato recente colocou em cheque a retórica oficial, que insiste na transferência de recursos públicos para as teles investirem em regiões pouco rentáveis do Brasil. Um estudo da UIT – União Internacional de Telecomunicações, também divulgado na semana passada, apontou que o Brasil precisa de US$ 11 bilhões para levar banda larga para todo o território nacional até 2030. Ora, só os bens reversíveis da Telebrás, doados pelo Congresso no ano passado para as teles, somam mais de US$ 15 bilhões pelo câmbio atual. Para um país que privatizou as telecomunicações para não precisar investir mais recursos públicos no setor, é muito dinheiro de presente.

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