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COMO ARBITRAR RELAÇÕES DIFÍCEIS?

“-Afinal, ainda existe amor entre vocês?” Uma pergunta insólita para uma audiência de separação. Aquele foro parecia impregnado de um romantismo contrastante com a realidade.

Claro que algum dia teve encantamento. No começo a comunicação fluía, tudo era muito nítido. Mas logo depois das alianças a relação foi se limitando àquele papel, como se resumisse tudo a um contrato. Pequenas atitudes de desprezo foram se somando, ganhando proporções: “-só agora você vem me falar isso?”; “-tem certeza de que não foi você que pediu?”; “-você tem provas do que está me dizendo?” E ainda, as cobranças só aumentavam: “-sim, você me deve isso. Eu nunca disse que poderia ser de outra forma, o combinado não é caro.” Até que a sensação de insignificância mostrou que aquilo tudo configurava verdadeira agressão.

Não dava para continuar tentando se entender, com quem vê vantagem em não esclarecer, em dar sempre a mesma resposta para tantas perguntas muito diferentes. Vivo buscando cooperação, mas nunca consigo. Começou então a rotina de contato com as autoridades. Hora de contar tudo, tim tim por tim tim. Mas… autoridades? Pareciam mais temerosas que eu. Mandam juntar documentos, conversar com o padre ou pastor, obter provas. E o desprezo na convivência só aumenta. Nem um oi para tentar aproximar.

Agora, em meio a uma relação nitidamente abusiva, as autoridades apresentam uma alternativa surpreendente: “-vamos deixar que o abusador defina as regras do relacionamento.” Se isso não é verdade para uma audiência de divórcio, é basicamente o que está em curso na relação das operadoras de telecomunicações com os clientes. Junto à Anatel elas estão empenhadas na autorregulação dos próprios serviços. Sim, as campeãs brasileiras de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor, garantem que têm as regras certas para deixar seus clientes protegidos e satisfeitos. A pergunta então é por quê as empresas do setor não adotam desde já essas regras?

Na prática, o que se pretende é mudar o RGC – Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações, cuja abrangência alcança, além das operadoras de telefonia, também as empresas de TV por assinatura e provedores de acesso à Internet. O RGC em vigência tem 7 anos e desde 2017 se tornou alvo de alterações. As operadoras querem uma “regulação baseada em evidências”, que permita maior flexibilidade, “como já ocorre em outros países”. Em março do ano passado sete grandes empresas do setor decidiram formar o SART – Sistema de Autorregulação de Telecomunicações, com um Conselho que encaminha propostas divididas em vários “normativos”. O mais recente foi o Normativo de Cobrança. Se você já tentou reaver valores cobrados acima do combinado com empresas de telecomunicações, imagine como isso vai ficar se for aprovado esse normativo. O normativo de Telemarketing, por exemplo, já foi apresentado há algum tempo. Você está contente com a forma como o telemarketing chega hoje pelo seu aparelho?

Nessa semana, em artigo publicado no site Teletime, o Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, fez duras críticas ao que vem sendo apresentado. No artigo, os autores focam na ideia de criar planos de serviços cujos clientes só contariam com atendimento automatizado-digital. O mesmo serviço seria oferecido em outro plano, contando com atendimento presencial e telefônico porém, mais caro. Para quem conhece a inteligência artificial dos planos atuais – muito artificial mas pouquíssimo inteligente – pode imaginar como será se não funcionar sequer na base da paciência. Hoje, depois de ouvir várias gravações que pouco ou nada contribuem para resolver o seu caso, a paciência pode levar você a encontrar, num menu remoto, algum humano. O que se cogita é tornar essa possibilidade de atendimento humano um diferencial, pelo qual o cliente deverá pagar a mais. Parece que essas empresas não gostam muito de conversa.

A pandemia está tornando inquestionável a essencialidade dos serviços de telecomunicações. Uma condição que cresce em qualquer cenário de futuro. As operadoras só lembram disso quando pedem redução de impostos e outras medidas de interesse próprio. Mas esquecem peremptoriamente quando se trata de aumentar a tolerância em favor de clientes em situações de exceção, como nesses tempos tão difíceis. São empresas sem qualquer vínculo ou identificação com a população brasileira e só se movimentam em direção ao aumento do faturamento. Receberam dezenas de bilhões de reais em bens reversíveis, vários incentivos para investir nos próprios serviços e agora estão na iminência de controlarem as próprias regras. Afinal, o que justifica tantos privilégios? Não fizeram por onde. Por outro lado, ainda não ficou claro o argumento oficial de que “o sistema atual, com base em multas, não deu certo”. Afagos, no lugar de punições, até hoje só funcionaram na educação de crianças.

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