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O GRITO DA PRIMEIRA DAMA

Não tem nada a ver com alguma trama policial. O “grito” de Michelle Bolsonaro, esposa do Presidente Jair Messias Bolsonaro, ecoou um chamamento corajoso entre milhões de brasileiros surdos e vibrou nos corações de toda a nação. No primeiro dia deste 2019, durante a posse presidencial, a bela e discreta imagem feminina da Primeira Dama quebrou o protocolo da cerimônia e discursou em libras – língua brasileira de sinais – antes do próprio presidente falar. Colocou em destaque, no mais alto lugar do Planalto, os portadores de deficiências.

Estatisticamente esse contingente gira em torno de 10% da população. A maioria desse percentual não tem deficiências totalmente incapacitantes. Eles representam um imenso potencial intelectual e de mão de obra. Mais um recurso precioso que o Brasil desperdiça. Dessa vez, foram eles os primeiros a receberem os agradecimentos pela jornada eleitoral vitoriosa. Foram os primeiros a receberem uma promessa oficial de que “serão valorizados e terão seus direitos respeitados.”

Na posse do presidente, que há muitos anos é acusado de misoginia, foi exatamente sua mulher que tomou a frente do evento, para dizer por quem vai lutar. Um contraponto simbólico de afirmação política para o presidente! Mas também um compromisso difícil de ser escamoteado, uma vez que repercutiu muito além das fronteiras e com intensidade.

Historicamente o Brasil tem demonstrado uma vocação para o assistencialismo, a despeito dos vários significados desse termo em diferentes juízos de valores. Algumas alcunhas acompanham essa tradição, apontam um destino selado metafisicamente para o país. Porém, no mundo concreto, o Brasil tem justificado em parte essa expectativa com uma expressiva contribuição tecnológica.

Dentre outros exemplos, são vários os aplicativos desenvolvidos aqui para ajudar no cotidiano de pessoas portadoras de diferentes tipos de deficiências. De acordo com o site UOL, do grupo Folha, em seguida ao discurso da Primeira Dama estouraram as buscas por um aplicativo desenvolvido em uma empresa alagoana, de Maceió. O app da empresa Hand Talk traz um avatar, o Hugo, que traduz frases escritas ou faladas em português para a língua de sinais.

O “GOOGLE DA CAATINGA” E MAIS

Quando Michelle Bolsonaro falou em “direitos respeitados” ela foi técnica. A legislação brasileira já consagrou muitos direitos para pessoas com deficiência que não são respeitados. Como exemplo, os sites de órgãos do governo e de estatais que, por força de uma lei federal de 2015, são obrigados a tornarem acessíveis seus conteúdos a pessoas com deficiência. Não é o que se vê em todas as páginas eletrônicas abrangidas pela lei.

O que se observa nesses casos é uma dinâmica peculiar. Uma lei entra em vigor e algumas grandes organizações adotam as exigências. Depois de um período o setor envolvido vai avaliar se a lei “pegou”, se está sendo fiscalizada pelo governo e pelo mercado. Só então o ordenamento vai se consolidar. Ou não.

A EiTV é atuante nesse viés tecnológico de inclusão. Recebeu prêmio Finep pelo aprimoramento nas legendas de closed caption. E agora, junto a outra empresa, prepara o desenvolvimento de uma ferramenta para inclusão de um avatar libras, como opção da TV digital para surdos. Mas o vaivém da fiscalização – ora rigorosa, ora excessivamente tolerante – atrapalha os investimentos nessas tecnologias.

O site UOL destaca o prêmio que a Hand Talk recebeu em 2013 da ONU, pelo Melhor Aplicativo Social do mundo! Uma conquista surpreendente, uma vez que a libras, como diz o próprio nome, é brasileira. Não é eficiente utiliza-la para se comunicar com um surdo formado em outra cultura.

Como no Brasil a fiscalização não garante o mercado que o aplicativo mereceria – e merecem, principalmente, os surdos brasileiros – essa notoriedade tem servido para atrair parceiros internacionais de peso. O Google, que oferece aplicativo para tradução de dezenas de idiomas entre si, é um deles. Fez um convite para um programa de “aceleração” da empresa.

Por iniciativa própria a Hand Talk agora desenvolve um aplicativo do para a ASL, a língua americana de sinais. Como não há equivalência com a libras, o trabalho deve ser longo. A inteligência artificial, que já está turbinando o aplicativo para libras, vai fazer parte do aplicativo que será lançado no mercado americano.

Aqui no Brasil, por enquanto, somos uma razoável referência quando se trata de criar leis e de desenvolver tecnologias para a inclusão de pessoas com deficiência. Falta agora a necessária seriedade, que a Primeira Dama está prometendo, para que a nossa criatividade encontre retorno no mercado.

NO ESPAÇO E TAMBÉM NO TEMPO

Tudo indica que, quando fez a promessa, Michelle Bolsonaro sabia do que estava falando. Há tempo ela trabalha voluntariamente para pessoas com deficiências, o que deve lhe valer conhecimento de causa.

No próprio discurso a Primeira Dama deu sinais da visão de liderança que para esse ambiente. Ela fez questão de agradecer e enaltecer o trabalho dos intérpretes de libras, numa demonstração de que, a valorização dos vários segmentos nesse tipo de trabalho, é fundamental para se atingir qualquer meta de atendimento e de eficiência.

A dúvida fica por conta do Presidente. Será que, ao concordar com a promessa, ele tinha uma visão real do tamanho do desafio? Em muitos aspectos o Brasil é uma prisão para grande parte das pessoas com deficiência. Os próprios órgãos públicos de assistência e promoção social, de saúde, educação e mesmo de apoio à recolocação profissional, não estão preparados para atender esses brasileiros.

Os programas de moradias populares não oferecem as condições desejáveis para um cadeirante, por exemplo. Portas muito estreitas, cômodos apertados que não permitem um acesso confortável. Faltam rampas em várias repartições, elevadores também, piso tátil para cegos e indicações em braile também são raros. As calçadas, que seriam o primeiro passo para fora de casa, não têm qualquer especificação legal para projetos que garantam o direito de ir e vir de portadores de deficiências em geral.

Ao atentar para esses detalhes o Presidente vai precisar também de uma longa conversa com o Ministro Marcos Pontes. Pois a inovação tecnológica, principalmente com o apoio da inteligência artificial (AI), internet das coisas (IoT) e conexão imediata (5G), representa a maior esperança, no momento, de um mundo mais inclusivo. Engenhos dos mais diferentes tipos e tamanhos vão ser associados às nossas vidas, desde os nano robôs imersos na corrente sanguínea, ou conectados a neurônios, até os exoesqueletos que podem nos livrar de cadeiras de rodas ou suprir sequelas de mutilações.

É importante lembrar que, com o crescimento da expectativa de vida, a “quantidade de vida” tende a avançar um pouco sobre a qualidade de vida. O que pode nos tornar, durante algum tempo, portadores de determinadas deficiências. Por isso, o grito de Michelle, que ecoou amplamente pelo espaço, precisa avançar também ao longo do tempo.

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