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DESAFIOS DA GESTÃO PÚBLICA

O Brasil está quase chegando lá, já está bem perto… do Brasil. Se falta lógica, não é na frase. Talvez nos fatos. Quando começou a digitalização do sinal de TV aberta foi anunciado que o país inteiro estaria coberto num determinado prazo. Houve atraso, mais tarde a missão foi dada por concluída. Quer dizer, concluída assim, né. Dos 5.570 municípios brasileiros, 1.638 ficaram de fora. Boa parte deles também está fora dos programas de saúde, de escolarização, até de alimentação. É o Brasil que vão acomodando por baixo do tapete.

A regra, de exceder na exceção das regras, prevalece. Nos programas oficiais, nos atos administrativos, nos feitos jurídicos, no uso de máscaras. No caso da digitalização, em princípio, as regras ficaram bem claras. A eficiência no uso do espectro eletromagnético pelas ondas digitais de TV, mais alguns ajustes facilitadores, fariam sobrar um espaço maior ainda para o 4G. As operadoras de telefonia estavam interessadas nesse espaço o quanto antes. E foram ao governo pedir a antecipação da migração daquelas ondas. O governo de então concordou, desde que as operadoras bancassem, para as famílias de baixa renda, o custo da conversão do sinal analógico para o digital. E isso era só parte das “compensações”, que incluíram até doação de transmissores para emissoras que precisassem de substituir equipamentos para liberar o espectro dos 700 MHz. Então tudo bem, quem arrematasse qualquer parte do espectro no leilão de concessão, teria que fazer um depósito proporcional, em favor das tais compensações. Ao final, os depósitos somaram R$ 3.6 bilhões.

Cumpridas todas as regras, chegou a hora de inventar as exceções. As operadoras de telefonia começaram a encontrar “problemas”. Nada muito sério, mas criativos, com certeza. “-As torres instaladas nas regiões mais remotas são quase inacessíveis.” (Ué, então como as torres foram parar lá?) A quantidade de famílias incluídas no plano – em torno de 14 milhões – era muito grande; faltavam critérios para contemplar as emissoras de baixo faturamento; não ia ter técnicos suficientes para cobrir o Brasil inteiro dentro do prazo.

Possivelmente as operadoras não “perceberam” isso antes do leilão porque o governo aumentaria o valor dos depósitos para as compensações. E agora, fazer o quê? Foi aí que as 1.638 cidades foram para baixo do tapete. Desapareceram do Brasil digital, que só estava nascendo. A solução veio na forma de uma autêntica “narrativa”, que não é apenas uma palavra da moda, mas um recurso muito usado, quando um atestado médico não cabe para justificar. Pelo não dito, foi dito pelas operadoras que não havia recursos para atender todas as cidades e que, na imensa maioria dos municípios, o espectro eletromagnético é pouco usado. Quer dizer, tinha espaço sobrando para banda larga móvel, fora dos grandes centros. Não havia necessidade de tirar a TV do sinal analógico, para sobrar frequência para 4G. Com o tempo os equipamentos digitais ficariam mais baratos, e qualquer emissora poderia comprar. Então, tá.

Passou boi, hora de passar a boiada. As operadoras queriam mandar set-top boxes (conversores) meia boca para as famílias contempladas, porque o dinheiro não seria suficiente para oferecer nada melhor. Daí o então Ministro, já sem muita paciência, determinou que comprassem o conversor do melhor padrão, que suporta interatividade. E assim foi feito.

Trabalho entregue, bora conferir quando dinheiro sobrou no caixa das compensações: R$ 1,38 bilhão. Ora, mas não ia faltar? No fim, sobrou mais de um terço! A proposta das operadoras era usar todo esse dinheiro para aumentar a banda larga. Indiscutivelmente necessária. E obviamente, produto vendido pelas operadoras e de alta demanda. Sem contar os vários incentivos oferecidos por governos das três esferas para “melhorar a banda larga”.

O atual Ministro das Comunicações, Fábio Faria, decidiu que as sobras do que não foi feito, vão ser usadas para fazer agora. O Minicom já publicou o edital para 73 municípios do Rio Grande do Norte, Ceará e Piaui. Um calendário completo, que vai até 2023, prevê a publicação de vários editais. As prefeituras interessadas se cadastram e vão receber gratuitamente o transmissor digital, para ser compartilhado por vários canais. Se ainda não tem sinal digital de TV aberta na sua cidade, procure o calendário do Ministério de Comunicações para saber quando será o cadastramento para o seu município. E acompanhe de perto para que a prefeitura não deixe passar o prazo.

Essa história é um caso clássico da vulnerabilidade da gestão pública diante dos interesses que orbitam o erário. O plano apresentado foi bem estruturado, funcionou em todas as fases e deve servir de exemplo para o edital do 5G, que terá encaminhamentos diferentes. Mesmo assim, a pressão de grupos de interesse acabou prejudicando o andamento dos trabalhos e o atendimento da população como um todo. A gente se vê numa rodada de truco. Onde o grande desafio é saber blefar, nem que para isso você precise gritar alto e subir em cima da mesa.

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