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SEDUÇÃO OU SUBMISSÃO NESSES TEMPOS DE INTERNET

Tem alguma bandeira de postos de combustíveis que você gosta mais? Que te faz andar mais tempo até encontrar um posto daquela rede? Agora considere que outra bandeira cedesse um carro para cada cliente que se comprometesse a abastecer somente nos postos dela. Uma proposta tentadora.

No caso do automóvel o custo é muito alto em relação ao combustível que consome. Mas se o compromisso incluísse, além do combustível, o óleo de motor, também o da direção, do câmbio, fluido de freios, os pneus, baterias, amortecedores, pastilhas, … tudo da mesma rede, quem sabe!?

A União Europeia possivelmente não aceitaria. Por uma prática parecida ela impôs ao Google a maior multa já aplicada contra uma empresa. São 4,34 bilhões de euros, algo em torno de US$ 5 bilhões.

De acordo com a Comissão Europeia, braço regulatório da UE, o que o Google fez foi estimular excessivamente as fabricantes de smartphones a instalarem o navegador da marca (Google Chrome), o motor de buscas (Google), o correio eletrônico (Gmail), Play Store (loja virtual de APPs) e alguns outros aplicativos. O grande estímulo que a empresa americana oferece são as versões mais atualizadas do sistema operacional Android, criado pelo próprio Google e escolhido para cerca de 80% dos smartphones do mundo. Na nossa analogia, o Android é o “carro” e os aplicativos são “combustível, óleo, pneus, etc”.

Para a Comissão trata-se de um modo ilegal do Google alavancar seu poder de mercado. O órgão regulador, no embalo, impôs condições para o Google firmar contratos com as fabricantes de celulares vendidos na União Europeia, de forma a não sufocar desenvolvedores concorrentes.

A maior multa da história, por enquanto, também é uma das mais complicadas. Não se fala em nomes ou números de leis ou tratados, artigos ou parágrafos. E nem deve ser possível, uma vez que se trata dessa coisa, que anda mais rápido que o resto do mundo e não tem referências ou jurisprudência. É a tal da Tecnologia da Informação e Comunicação, o tic nervoso do momento.

A INTERNET ENCONTRANDO FRONTEIRAS

A defesa do Google, no entanto, tem referência num caso concreto. É um vizinho dela, a Apple, nascida no mesmo berço esplêndido da tecnologia. Ao criar o smartphone a Apple embarcou seu próprio sistema operacional (iOS) e todos os aplicativos nativos da mesma empresa. Para a União Europeia, até agora, tudo bem. O iOS, aliás, é um sistema muito mais restritivo do que o Android, do Google. Possivelmente o Android foi a ferramenta fundamental para que tantas outras marcas e modelos de smartphones surgissem pelo mundo, formando uma concorrência à altura no mercado desses aparelhos.

Olhando assim, juridicamente, stricto sensu, a atitude da Comissão Europeia parece um completo absurdo. Porém, aqui na rua, batendo a nossa bola do dia a dia, as regras não são tão claras, têm de ser mais intuitivas. O Google projetou e desenvolveu um modelo de negócios tão acertado que, somado a outras condicionantes, é imbatível. E, simplesmente, assim não dá!

Quando percebeu que o smartphone se tornaria mais um sistema do corpo humano, ao lado do cardiovascular, digestório, nervoso, respiratório e outros, o Google resolveu ser a própria biometria – ou bit metria – dos indivíduos. A chave para a entrada, não apenas na Internet, mas no transe de consumo, um estado mental que começou a ser explicado pelo professor americano Richard Thale, e lhe valeu o Nobel da Economia em 2017.

De acordo com a Economia Comportamental – ou Contabilidade Mental, como entendeu o comitê do Nobel – na hora de usar o próprio dinheiro as decisões não são racionais. Porém, as pessoas saem da racionalidade de maneiras coerentes, possíveis de serem previstas. Com as bases de dados de que dispõe o Google, essas “maneiras coerentes” devem se tornar bem mais evidentes.

O modelo de negócios do Google, a olhos vistos, desbancou a maioria das grandes agências de publicidade do mundo, jornais, rádios, revistas, emissoras de TV, tudo que sempre influenciou o comportamento do consumidor – e do cidadão! É a enciclopédia, o dicionário, a memória recente e também a remota, é o mapa dos negócios, é o caminho que escolhemos em nossas vidas, para ir e vir. Não há uma grande sacanagem em nada disso, só excesso de competência, num mundo que adotou a competição como princípio democrático nos negócios.

Mesmo contra os pressupostos mais respeitados do mercado, a ação da União Europeia tem lógica, sim. Talvez não esteja prevista em leis, como também não estão regulados legalmente o IoT, o Bitcoin, os grampos no WhatsApp. Nem o direito à privacidade, um dos mais essenciais da pessoa humana, tinha garantias jurídicas nos domínios da Internet, até há muito pouco tempo.

INDEPENDÊNCIA OU SORTE

As promoções ou serviços ao cliente sempre existiram com o mesmo propósito: seduzir o consumidor. Um empreendedor faz as contas e baixa o preço na hora da xepa. No supermercado sempre tem um leve 3 pague 2, no comércio em geral as liquidações de fim de temporada, mais recentemente as milhas na aviação e os cartões de fidelização. Nunca ninguém viu nada de errado nisso.

Operadora de telefonia móvel ofereciam aparelhos novos para trocar os pontos somados pelas contas pagas. Até a TV a cabo foi um serviço gratuito, no início. Um brinde para quem comprasse um televisor, a grande novidade de então. Os cabos garantiam um bom sinal da transmissão. O modelo de negócio para venda de aparelhos de TV começou a se replicar nos Estados Unidos, até que surgiu a empresa HBO e resolveu usar aquela base cabeada para transmitir uma programação mais diversificada. Outro modelo de negócios nascia.

Voltando à União Europeia, para o cidadão daquele continente – teoricamente a razão maior de toda essa celeuma – parece que o problema é o inverso. Imagine, depois de comprar um smartphone novo, você mesmo ter de procurar, baixar e instalar cada um dos aplicativos que mais usa. Deixe como está, provavelmente dirá a maioria.

Mas são os governos que estão preocupados com isso. Eles, tradicionais reguladores e controladores da vida dos seus cidadãos, não querem que outros usem desses poderes de submissão. Isso já teve uma lógica, quando o estado garantiria mais segurança às pessoas e seus entes mais próximos, de mesma cultura e etnia. E oferecia também mais serviços públicos, como saúde, educação, lazer. É isso que acontece hoje em dia na maioria dos países?

No mundo paralelo da Internet está sendo gestado um outro estado. Ele já mostrou poder para baixar os preços de táxis, os custos de hospedagem, procura os melhores preços do comércio, indica onde vende, como se chega lá, tem até moedas próprias. Os países que não mostrarem capacidade de concorrerem na oferta de bons serviços aos seus cidadãos, estão fadados a cultivar o patriotismo apenas durante os jogos da Copa do Mundo.

Por enquanto, a reação da União Europeia faz sentido. Mas vai precisar ir além, desenvolver competências para concorrer com a tecnologia americana, e também com a chinesa. Até lá, esse símbolo complicado que eles escolheram para o Euro (€), vai continuar fora dos teclados que a gente usa no dia a dia.

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