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QUEM DESDENHA QUER COMPRAR

Teve um tempo em que toda escola tinha a festa da Primavera. E a conversa é exatamente com você, que passou pelas festas de primaveras, que hoje está numa idade madura, e que agora tem a experiência necessária para compreender coisas confusas da adolescência.

Você – ou outro personagem da turma – tinha sido destaque nos jogos colegiais do primeiro semestre. Era amigo de todos, sempre o queriam por perto, tinha “espigado” naquele ano, altura quase de adulto. A roupa daquela tarde lhe caiu bem, destacava-o no pátio da escola, as meninas observavam furtivamente.

Daí chega a Mariana, seu crush, fazendo questão de chamar a atenção de todos. Daquele jeito espevitada, via uma amiga e dava gritinhos, abraçava como quem esperou anos por aquele momento. Ela via o Paulinho, depois o Zezinho, para cada um fazia aquela cena toda, beijinhos e gracinhas. Até que chega a vez do rapaz “destaque” da temporada. Ela dá um sorriso discreto e estende a mão para cumprimentar.

Aqui a segunda pessoa está no masculino pois o papel da terceira pessoa, a Mariana, é mais típico de meninas adolescentes. Ou era. A questão é que não se pretende nenhuma crítica ou censura. Aquele gelo, mais tarde, se confirmou como a prova mais evidente do interesse dela pelo esnobado. No calor da paixão, possivelmente ele se confundiu. Mas muitos dos seus concorrentes perceberam o sinal invertido na atitude dela. Talvez a Mariana hoje esteja aí, do seu lado, seja sua esposa, mesmo assim ela dificilmente vai confessar que fez aquilo para chamar sua atenção.

Foi mais ou menos o que se viu com o Netflix nesse Globo de Ouro. Recorde de 34 indicações, metade para cinema, metade para TV. Nenhum dos maiores e mais tradicionais estúdios do cinema recebeu 17 indicações. E na grande noite, apenas duas premiações. Menos do que outros que receberam menos indicações. Será que os correspondentes estrangeiros, que fazem a seleção inicial, estiveram bebendo exageradamente no período de indicações? O que os teria levado ao recorde de erros na avaliação das produções? Pois é, o júri do Globo de Ouro se fez de Mariana: “-Não vou pagar essa pra você, não se sinta a última bolacha do pacote.”

Ao longo do tempo essas contradições vão se explicar por si só e a esnobação adolescente do Globo de Ouro tende a ser um marco histórico na ascensão do modelo de negócios nascido numa locadora de vídeo, em Los Gatos. Na mídia, não se viu referencia ao Globo de Ouro deste ano sem que o nome Netflix fosse citado. A grande ante-surpresa foi o maior destaque da festa, antes de qualquer filme, ator ou diretor.

No final das contas fica a grande dúvida: o que há de errado com o modelo do Netflix? O negócio dinamizou fortemente a indústria cinematográfica, aumentou os contratos com atrizes e atores, diretoras e diretores – embora nenhuma diretora tenha conseguido sequer indicação para este ano – mobilizou profissionais de todos os setores da sétima arte. Mas… (mas o quê?).

O melodrama em exibição tem uma grande dose de saudosismo. Por isso caiu bem começar pela festa da primavera. Nada a criticar, somos assim, temos saudade daquilo que tanto nos preencheu, que emoldurou momentos marcantes de nossas vidas e que conserva ritos que nos foram tão solenes. Imagine para aqueles que hoje são a história viva de Hollywood! Estão vendo seus amigos, executivos de grandes estúdios, de operadoras de TV, desesperados pelo risco de perderem seus empregos. Já viveram histórias assim em seus papéis, o drama da existência humana, os rumos que nos são impostos.

Das produções delivery – se é que se pode chamar assim o que chega em nossas casas, pela TV – o Globo de Ouro mostrou que só está de bem com as operadoras de TV por assinatura, aquelas que sempre guardaram seus devidos lugares, abaixo das telonas, é claro. Os serviços de streaming via boxes também mereceram algum respeito. A Hulu, maior do setor nos Estados Unidos, recebeu premiações, também a Amazon. Mas aquele streaming via Internet, do qual o Netflix é um ícone, virou o gangster da festa, o intruso, prepotente.

Virá o tempo em que o espírito empreendedor de Reed Hasting e de Marc Randolph terão um justo julgamento pelo que representaram na história das produções audiovisuais. A conquista das telas de celulares, tablets, de todos os espaços onde a dramaturgia fosse desejada. É em função desse fenômeno que a média de tempo dedicada a esse tipo de lazer está crescendo.

Tudo isso não aconteceu apenas por conta da descoberta do mais prático sistema de entrega. Mas pela visão de seus fundadores, que foi além, que buscou perscrutar cada detalhe do conforto humano, em busca do modelo de produção exato para cada situação. Haverá de surgir também a primavera, depois desse rigoroso inverno que se abate sobre o Netflix.

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