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QUESTÃO DE PRIVACIDADE

Uma série de TV brasileira sobre um drama que assombra todo o país. No caso ficcional, uma família de classe média alta vê uma das filhas, já adulta e bem sucedida profissionalmente, mergulhar numa dependência química. Perda de emprego, internações, ameaças de suicídio. O fim da própria autonomia, da auto estima, o juízo tomado pelo vício. A filha desaparece de casa. A trama mostra a mãe na sala da casa, é noite, as luzes apagadas, o celular na mão. Ela espera que alguém ligue trazendo alguma informação. A outra filha tenta acalmar a mãe e, de maneira hábil, tenta convencê-la a ir dormir.

O telefone toca. Num sobressalto a mãe atende:

“-Alô.”

Suspense total! Seria a polícia com alguma informação? Só a mãe ouve a resposta que vem do outro lado. Com uma expressão de frustração e raiva contida ela responde:

“-Não, eu não quero…”

Parece que, do outro lado, a resposta não foi aceita, estaria tentando continuar a conversa. Num crescente de raiva a mãe interrompe o interlocutor e, com a voz alterada, vai aumentando o volume até finalizar em total histeria:

“-Não, eu já disse que não quero comprar nada. E nunca mais ligue nesta casa pra tentar vender qualquer coisa. Nunca mais.” Ligação encerrada antes do eco dos berros.

Muito criativa a conexão que o roteirista fez entre a tentativa de auto controle num drama grave, interrompida pelo descontrole produzido por um drama recorrente dos cidadãos brasileiros. É o telemarketing, que invade aleatoriamente a vida de qualquer pessoa, como se todos no país estivessem aguardando exatamente aquilo que eles querem vender. Difícil acreditar que alguém, assistindo àquela cena, não tenha entrado no stress da personagem por identificação com o drama da inesperada chamada.

Os números assustam mais do que qualquer berro. De acordo com a Anatel, no começo deste ano, considerando apenas as chamadas abusivas, eram 4 bilhões. Por semana! Isso inclui aquelas que você atende e ninguém responde, como se fosse um trote. Não somos só nós que ficamos surpresos. O True Caller, um aplicativo para identificação e denúncia de chamadas abusivas, coloca o Brasil em primeiro lugar no ranking internacional de chamadas desse tipo. Faz cinco anos seguidos que esse “título” destaca o Brasil, sem representar nenhum privilégio. O problema é antigo, só se agrava, e agora a Anatel estabeleceu como meta chegar ao final do ano com uma solução definitiva. Ver para crer.

O negócio é altamente rentável. Tanto que as principais empresas de telemarketing são justamente das operadoras de telefonia. O que torna tudo muito delicado é a quantidade de empregos que o setor oferece. São centenas de milhares de trabalhadores, a capacitação exigida é baixa, todos são contratados com carteira assinada e recebem alguns benefícios adicionais. Ainda assim a rotatividade é alta, o que leva a pensar que as condições não convencem os próprios trabalhadores. Por outro lado, são números que enfeitam as estatísticas do Ministério do Trabalho. A quantidade de produtos e serviços negociados é imensa, a receita e os impostos gerados também são importantes para a economia nacional. Tudo isso está em jogo quando aquela ligação inconveniente se repete no seu celular. É o que garante um razoável poder de barganha para as empresas do setor.

Arthur Coimbra, conselheiro da Anatel, afirma que o problema é mundial, por isso está observando soluções de vários países. Ela deverá estar baseada no modelo “STIR/SHAKEN”, algo parecido com as chamadas “0303”. O consumidor deve saber previamente a natureza da ligação. Já foi proposto que o prefixo 0304 seja adotado para ligações de cobrança. De acordo com o site Teletime o desenvolvimento dessa solução deve ser bancado pelas empresas do setor.

Há pouco mais de 50 anos o grande problema era os vendedores de livros. Eles traziam coleções produzidas com jeito de enciclopédia. O conteúdo mais se parecia com o de livros de curiosidades. Os vendedores tinham um longo roteiro na ponta da língua, apresentavam ilustrações e “promoções imperdíveis”. Em geral, nas casas já havia uma estratégia para olhar no portão sem ser notado. Quando um desconhecido carregava uma mala pesada e tinha uma espécie de pasta de cartolina debaixo do braço, a regra era não atender. Hoje, no último andar de um condomínio, dentro do quarto, é grande o risco de ser o “flagrado” pelo telemarketing. Com a diferença de que os vendedores de livros apareciam, quando muito, uma vez por semana.

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