sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
A capacidade de amar é uma das características que difere a espécie humana de todas as outras. Um sentimento que se projeta intensamente sobre outro, além da nossa própria existência, tornando-o objeto do nosso amor. Historicamente, esse sentimento intenso se manifestou sob as formas mais curiosas, entre os homens e as mulheres: houve o tempo do canivete, de joias em geral, casacos de pele, relógio de ouro, chinelo de couro. Mas nenhum deles mereceu lugar tão especial como os carros.
A eletrônica apresentou fortes concorrentes, como o computador pessoal, que acabou arrebatado pelo celular. Mas o carro ainda não perdeu sua majestade. Amor pode não ter explicação, mas nesses dois casos em especial parece existir algo em comum: os dois ampliam a nossa interação com o mundo, aumentam o nosso espaço na Terra. O celular/computador porque nos traz documentos, lugares e pessoas dos pontos mais remotos. E o carro porque nos leva presencialmente a um raio bem mais amplo de espaço e tempo.
Pode não ser nada disso, mas que celular e carro são muito amados pelos seus donos, ah são, sim. Não convém mexer com eles, criticar, desmerecer. É mais ou menos como a mulher do outro. Só ele pode falar mal e, quem estiver ouvindo, é melhor não concordar nem discordar. A regra é ficar calado.
A confirmação desses amores inquestionáveis se vê, por exemplo, no volume de dinheiro que a indústria movimenta. A do automóvel, segundo recente divulgação do site UOL, fatura US$ 3,5 trilhões por ano no mundo, cerca de R$ 11 trilhões. Desse valor, 80% correspondem à venda de carros novos. Os 20% restantes ficam por conta dos serviços de manutenção, que envolvem também troca de peças.
Quanto ao celular, que tem o potencial de se tornar o mais traiçoeiro inimigo de quem está ao volante, o detalhe relevante nessa abordagem não é o faturamento. Mas a crescente pressão para harmoniza-lo com o carro, como um super acessório, talvez até um “assessor”.
O BURACO É MAIS EM BAIXO
A combinação carro/celular deve continuar excluindo o cômodo do tipo volante. Esse lugar em especial deve receber os afagos de muitos componentes da família celular, que estarão espalhados em todos os cantos do carro. Basicamente chips e sensores, capazes de oferecer informações em tempo real sobre falhas em peças do automóvel e outros problemas potencialmente comprometedores para a segurança. Mas isso é só o começo.
Estima-se que hoje existam em torno de 5,5 milhões de carros conectados no mundo e, cada um deles, gera 25 GB de dados por dia. Como big datas em geral estão aí pra crescer indefinidamente, a indústria se prepara para otimizar a oferta de dados, para os mais diversos usos. Que indústria? Pois é…
No mercado já se dá de barato que Google e Apple desistiram de virar marcas de automóveis. Perceberam que nessa praia não basta prancha, parafina e as gírias mais descoladas. E estariam percebendo também que, o que já têm a oferecer para os carros, pode ser mais rentável do que vão conseguir assinando calendários de mulheres nuas nas oficinas mecânicas.
Isso tende a tornar as gigantes de TI as melhores amigas das montadoras. A possibilidade de uma tentar dar o bote na outra fica cada vez mais remota. Porque na ponta, essas duas tecnologias tendem a se tornar mais complexas e seus respectivos consumidores, mais exigentes. Um eventual celular da Ford demoraria um tempo inviável para vingar. E o carro da Google, se fosse viável, não teria aberto o bico antes de entrar na primeira revenda.
Um exemplo presente ilustra o desafio de se fabricar automóveis hoje. Num acordo inusitado, japoneses da Nissan, alemães da Mercedes Benz e franceses da Renault se juntaram para construir uma plataforma única para lançamentos de carros que vão concorrer entre si. A plataforma é modular, o que dá uma certa versatilidade para alterar o jeitão de cada projeto em particular. Assim, Nissan Frontier, Mercedes Benz Classe X e Renault Alaskan vão para o ringue do mercado sem que a maior parte da plateia saiba que eles são “priminhos”. Ora, se até fabricantes de automóveis concorrentes, todas muito experientes, decidem se unir para continuarem brigando no mercado, é porque a parada não é fácil. Só o custo de uma plataforma nova, que envolve também mudanças na linha de produção, está estimado na ordem de US$ 1 bilhão. E o carro nem ficou pronto, estamos falando só da plataforma.
Esse exagero de custos e prazos – nunca menos de dois anos – para se chegar a um modelo novo aparece no mercado de forma curiosa. Especialistas garantem que, aquela rotina de lançamentos de concorrentes com características semelhantes, é uma tentativa de diminuir os riscos para os fabricantes. Aqui no Brasil, por exemplo, como o povão está consagrando uma preferência pelo Onix da Chevrolet, é natural que próximos lançamentos de concorrentes sejam bem semelhantes. As fabricantes não estão interessadas em prêmios de originalidade, como os que são distribuídos nas exposições de arte. Querem mais é seus modelos circulando nas ruas.
RAZÕES IMPONDERÁVEIS DA PAIXÃO
Como em boa parte das uniões felizes e duradouras, o que motiva um amor do tipo Google e Chevrolet só poderia ser muito dinheiro. E isso viria da enxurrada de dados que novos sistemas móveis podem obter a partir dos carros. Fala-se em algo na casa de US$ 1 trilhão em dez anos. E não é uma estimativa de prancheta.
As gigantes de TI, que agora se aproximam das montadoras, aprenderam a faturar muito dinheiro com os dados que oferecemos pelo simples fato de carregar um celular pra cima e pra baixo. Boa parte desses dados chegam graciosamente para eles. Considerando a mobilidade muito maior de um carro, imagine onde podem chegar – os lucros. Além das informações de segurança e de outros detalhes de apoio ao pós venda, um carro pode gerar informações sobre o trânsito, clima, poluentes e muitos mais. Dados que interessam às montadoras, mas também à sistemas de crédito, de comércio dos mais diversos segmentos, seguradoras, gestores de trânsito, etc, etc. Tanto que a preocupação está passando a ser a geração de eletricidade que o carro seria capaz de suportar, para manter funcionando tanta cibernética.
E por falar em eletricidade, em energia, aí está um fator decisivo para alguns rumos da indústria da mobilidade. Dele descendem o tipo de motorização – se elétrica ou à explosão – e a condução.
Como objeto de paixão, o automóvel guarda um vínculo que vai além da utilidade. Houve tempos em que se vendia escapes muito mais caros, simplesmente pelo ronco que propiciavam aos motores. A paixão faz com que adolescentes sonhem com o dia em que vão conduzir um carro. Depois continuam sonhando, ao longo da vida, em dirigir mais este, e aquele outro. Falar em carros autônomos não parece nada sedutor para esses aspirantes a piloto. Tudo bem, os autônomos podem representar soluções eventuais. Mas os custos envolvidos com a segurança desses sistemas e com a possível necessidade de centralização da gestão desse tráfego – pelo menos em parte – podem não compensar os benefícios que prometem. É só mais um quadrante do complicado tabuleiro, onde essa indústria e o mercado jogam este desafio.
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