sexta-feira, 09 de fevereiro de 2018
Dois garotos, duas certezas:
“-Quanto você quer apostar!?”, desafiou um deles.
“-R$ 10,00. Tenho certeza de que eu estou certo. Lelo, vem cá, corta aqui.”
Ninguém lá tinha mais de 12 anos. Os dois contendores de mãos dadas e o Lelo, que cortou a aposta, para ser a testemunha do que acabara de ser apostado.
Sempre foi assim. Atendentes de cartório devem distribuir diariamente mais autógrafos, como testemunhas em contratos, do que o Neymar Jr. como ídolo do futebol. As incertezas dos humanos quanto aos outros humanos são muitas, alguém tem que tomar conta, ver e confirmar tudo, quem estava lá, o que disse, o que ouviu. Até no casamento. E mesmo assim os tribunais estão atolados em mal-entendidos, interpretações, “mais ou menos”, “quase isso”, …
Os custos dessas incertezas, em todos os níveis, são astronômicos. Para a simples compensação de um cheque, depois de conferir todos os dados e valores, é necessária a assinatura de um gerente, como garantia. É a chamada “terceira parte”, mais ou menos o papel do Lelo, quando “cortou” a aposta entre seus dois amiguinhos. São muitos sistemas de controle, protocolos, procedimentos encadeados, muitas vezes com arquivos filmados.
Ainda bem que, num belo dia, alguém – que pode ser uma pessoa ou um grupo de pessoas – resolveu inventar um banco central descentralizado. É exatamente a plataforma aberta denominada blockchain, criada para movimentar bitcoins. A plataforma, de código aberto, surgiu para ser uma espécie de câmara de compensação de bitcoins, portanto, totalmente virtual. Mas, principalmente, precisaria ser mais segura do que os bancos reais.
Se esses objetivos de eficiência e segurança fossem alcançados, a moeda virtual poderia circular independentemente de bancos centrais nacionais, com total autonomia diante de governos. Inclusive, independência em relação ao sistema financeiro internacional. Depois de quase 10 anos de existência, o bitcoin ainda procura se firmar como uma autêntica reserva de valor. Mas a plataforma blockchain já comprovou a eficiência e segurança.
Tanto que o tradicional sistema financeiro internacional está lançando mão da plataforma blockchain para aumentar enormemente a própria eficiência e reduzir muito os custos de operações em geral. No Brasil, o banco Itaú anunciou na semana passada que está implantando o sistema para negociações com bancos parceiros, na troca de garantias com base em derivativos.
DESCENTRALIZAÇÃO, TRANSPARÊNCIA, RASTREABILIDADE
A eficiência e a segurança blockchain surgiram em função das características dessa estrutura de dados. Começa que a base desses dados é totalmente descentralizada. É uma rede do tipo P2P, onde cada usuário que baixa a implementação da plataforma se torna um nó daquela rede.
Ao dar entrada numa transação o sistema executa alguns algoritmos para que os dados e registros sejam arquivados num bloco. Esse bloco é assinado eletronicamente, ou seja, recebe um hash, é criptografado. O hash é ligado ao bloco anterior, contém um número sequencial e o número do próximo bloco, que é gerado automaticamente, quando o bloco da transação é concluído. Datas e horários também fazem parte desses registros. Tudo isso é compartilhado com todos os nós da rede P2P, descentralizando totalmente a base de dados.
O bitcoin, por exemplo, foi a primeira implementação na plataforma blockchain. Cada negociação, de cada bitcoin, está registrada numa sequencia de blocos que formam uma determinada cadeia. Os algoritmos executados a cada negociação começam por conferir todos os dados daquela cadeia de blocos daquele bitcoin, desde sua origem. O sistema verifica se existe um “consenso” sobre os dados, comparando com os registros de todos os nós da rede, para que então seja permitida a nova negociação.
É isso que torna praticamente impossível corromper um bloco de uma cadeia (blockchain). Porque seria necessário que toda a cadeia fosse corrompida, em todos os nós da rede, ao mesmo tempo. Como isso é praticamente impossível, todos esses dados podem ser apresentados publicamente, dando total transparência e rastreabilidade ao sistema.
Com base nesse sistema já surgiu o que se chama de blockchain 2.0, uma evolução que permite novas aplicações. Dentre elas, a criação de organizações autônomas descentralizadas (DAO), que seriam empresas virtuais, baseadas num conjunto de regras, descritas num “contrato inteligente”.
Uma das aplicações mais evidentes é nos sistemas de logística. A IBM está investindo pesadamente nessa área. O setor bancário já tem vários grupos reunidos para desenvolvimento de sistemas baseados em blockchain, contando inclusive com a participação de startups dedicadas a essa plataforma. Especialistas fazem projeções surpreendentes sobre o futuro dessa tecnologia.
UMA NOVA INTERNET
Na semana passada, durante a Campus Party, um nome lendário ligado à Internet falou com bastante entusiasmo sobre blockchain. O canadense Don Tapscott, numa das conferências do evento, afirmou que essa nova tecnologia nos traz a Internet do Valor, algo além da Internet da Informação, essa tradicional que tanto conhecemos.
Para ele o blockchain, ao trazer esse nível de confiança para operações feitas via Internet, permite que tudo que tenha valor e um dono possa ser negociado na rede. Ele vê na tecnologia blockchain um horizonte mais promissor do que qualquer outra tecnologia do momento, como Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Robótica. Pois, enquanto “protocolo de confiança”, permite que todas as outras tecnologias sejam negociáveis pela rede, dando maiores possibilidades econômicas a elas.
Ele aponta ainda as perspectivas para as companhias virtuais, baseadas na confiabilidade dos dados para que decisões sejam tomadas autonomamente, com segurança. Isso dará à pequenas empresas a agilidade e abrangência de grandes empresas. Destacou também a importância que esses sistemas terão na gestão pública, uma vez que permitem total transparência dos dados e procedimentos, tudo em tempo real.
Por enquanto os bancos começam a contar quantos tipos de operações podem migrar para sistemas blockchain. Com a perspectiva de evolução desses sistemas, será que chegaremos a bancos totalmente virtuais? De fato, muito da importância das instituições financeiras está no papel de “terceira parte”. Na produção de registros e segurança destes. Seus insumos e produtos são quase que totalmente expressos em números, entes preferenciais no universo digital. Para quem entende que os bancos representam uma economia especulativa, que se contrapõe à economia produtiva, o blockchain pode surgir como uma grande solução.
Os idealizadores dessa tecnologia a desenvolveram para dar sustentação às moedas virtuais, que teriam a autonomia necessária para se desligarem dos vícios financistas. Mas, o que parecia impossível para o bitcoin atingir, pode estar mais ao alcance do seu sistema nativo. O Lelo até pode continuar cortando as apostas, mas os bancos talvez se vejam na necessidade de mostrar maior importância nos serviços que prestam à sociedade.
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