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“FAÇA COMO EU MANDO E NÃO COMO EU FAÇO”

“É um abuso do processo legislativo e viola os princípios dos EUA, indo contra a natureza da constituição norte-americana ao agir inconstitucionalmente como juiz, júri e carrasco”.

Quando você pensa que já viu de tudo nessa vida, você descobre que o mundo é que virou outro. As palavras entre aspas, ditas por Guo Ping, chairman da chinesa Huawei, soam como um conto de Kafka. Foi numa coletiva de imprensa – evento nada característico da China – em Shenzhen. A empresa anunciava o processo com o qual deu entrada no Tribunal Federal dos Estados Unidos, contra o governo americano.

A Huawei está contestando o artigo 889 da NDAA (Medida de Autorização da Defesa Nacional) que impede a compra de seus equipamentos e serviços por parte de agências governamentais dos Estados Unidos. As agências também estão proibidas de contratar terceiros que utilizem a tecnologia da fabricante chinesa. As restrições incluem ainda a suspensão de empréstimos ou concessões para clientes americanos da Huawei.

Há tempo o presidente Trump afirma que os equipamentos da empresa possuem backdoors, ou seja, maneiras de entrar remotamente, de forma invisível, nos sistemas que comercializa. Pelo fato de um dos fundadores da empresa ser ex-militar de alta patente do Exército Vermelho, Trump acusa a Huawei de estar informalmente vinculada ao governo chinês.

Numa visão histórica, os scripts estão trocados. Só falta os Estados Unidos “denunciarem o imperialismo chinês”. Guo Ping não deixou por menos e incorporou o Tio Sam por completo. Em seu inconformismo mostrou que sabe bem o que significa “Direito” e até protestou com pertinência contra a falta do “devido processo legal”, da “ampla defesa”, de “provas materiais”. Pugnou pelo respeito às normas burguesas da livre iniciativa e da justa concorrência.

O cidadão chinês – se é que existe propriamente “cidadania” na China – nem considerou o regime de partido único em seu país ao protestar contra o embargo americano. Guo Ping evocou os “princípios da separação de poderes conservados na Constituição dos EUA”, ao acusar o Congresso de estar “legislando e tentando julgar e executar a lei.”

É um rezando para o deus do outro, sem nenhum anjo para entoar as ladainhas.

MUITO PODER EM JOGO

Nem precisa ser bom observador para perceber que se trata de uma guerra comercial. Com a diferença de que, certamente, não é apenas mais uma disputa de mercado. Trata-se de uma posição estratégica crucial onde está em jogo a liderança no comércio mundial.

A porta desse reinado hoje tem como sigla o 5G. A quinta geração do tráfego móvel de dados delimita o amplo território sobre o qual devem ser cultivadas praticamente todas as soluções para os próximos anos. E, por enquanto, é difícil assegurar que os Estados Unidos estejam à frente nessa tecnologia. A reação extrema contra a concorrência chinesa é mais um sinal de que nem os americanos apostam no próprio favoritismo. O que se viu no início deste mês em Barcelona, durante a MWC 2019, também não foram amostras de superioridade da tecnologia americana.

A investida jurídica da Huawei contra o governo americano foge da tradição maoísta, assentada sobre dogmas marxistas da fase pré-democrática. Mas pode ser considerada uma decorrência natural, diante do ostensivo boicote americano. Além de impedir compras governamentais de produtos da empresa, o governo americano estaria pressionando outras nações a recusar equipamentos e serviços da Huawei. Tornou-se imperativo alguma reação para evitar o previsível sufocamento.

Song Liuping, diretor jurídico da fabricante chinesa afirma que até hoje os Estados Unidos não obtiveram uma única prova de backdoors ou quaisquer outros meios de violação de dados nos equipamentos Huawei. A empresa se propõe a prestar todos os esclarecimentos sobre seus sistemas e ainda, se declara orgulhosa por ser a empresa “mais aberta, transparente e escrutinada do mundo”.

É cada um provando do próprio veneno. Os Estados Unidos, berço da democracia, dos direitos individuais e da livre concorrência são obrigados a ouvir o adversário comunista chama-los de protecionistas. E os chineses, acostumados a mandar, ao invés de pedir, se veem ajoelhados diante de uma corte ocidental, pedindo o reconhecimento de seus direitos. Recorrem ao processo contra o qual se rebelaram, em nome de uma suposta “libertação dos povos”. Ironia é para os fracos…

JUSTIÇA AMERICANA EM CHEQUE

Nessa história, China e Estados Unidos trocaram de manequim e o que se vê agora são ambos numa saia justa. Sinal de que nenhum dos dois estava confortável em suas próprias identidades. Quando o poder está em jogo e não há ninguém acima para mediar, o salve-se quem puder é a senha mais conhecida.

Embora os Estados Unidos saibam muito bem como se defender, inclusive retoricamente, está no ar a dúvida sobre como será a reação do Judiciário, diante de um processo tão bem sustentado pelos requerentes chineses. Ao mesmo tempo em que se propõem a abrir a própria tecnologia, os engenheiros da Huawei afirmam que apenas 30% dos componentes do seu 5G são da casa. O restante vem de fornecedores globais. Lembrou ainda o exemplo da Apple, share of mind da tecnologia de consumo americana, que em 2016 já tinha metade da produção dos iPhones vinda da China.

E então, onde é que “tá pegando”? Vai ser necessária muita criatividade para passar por cima desses argumentos. É provável que mais desculpas apareçam para procrastinar uma decisão. Ou que as instâncias aleguem algum impedimento em julgar o caso. Difícil é acreditar que uma corte americana dê uma sentença favorável a uma empresa estrangeira que é a principal concorrente dos Estados Unidos, num segmento tão expressivo da indústria.

A transformação que o 5G promete para os próximos anos é algo difícil de ser comparado com qualquer fato anterior da história. Por isso esse enfrentamento promete lances surpreendentes. Mais do que atuar no mercado americano, a Huawei quer manter uma imagem, enquanto empresa, capaz de torna-la mais competitiva ainda no mercado internacional. A concorrência americana sabe disso e continua a atacar em todas as frentes.

Talvez seja essa a oportunidade de se pôr as cartas na mesa. Os americanos se veriam impelidos a declarar abertamente como enxergam o sistema de produção chinês. Isso implicaria no fim do uso indireto da mão de obra quase escrava daquele país. Por outro lado, também teriam que mostrar o quanto prezam a concorrência.

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