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DICIONÁRIOS VÃO À FORRA

Insignificante.

Deve ser o estágio mais primitivo da existência. Uma coisa que já existe porque, afinal, é. Mas é insignificante, não quer dizer nada, não representa nada. Os dicionários sabem bem o que é isso. Eles existem para tornar diferente do insignificante tudo mais que existe. Guardam os significados das palavras e lhes dão longevidade, não sem encher de armadilhas as respectivas grafias.

Mas vem o mundo novo, virtual, e escraviza os dicionários, que trabalham gratuitamente para os senhores cibernéticos. Pode ser culpa dos bots, que eram estranhos aos dicionários e assim, sorrateiramente, tiveram facilidade para subjuga-los. Coisa do tal mercado, pra adular os clientes internautas – olha outro recente alienígena aí – que agora escrevem suas besteiras com a correção automática da grafia. Sobrou, como valor, o significado.

É onde os dicionários estão retomando a importância para o mercado. Escolhem a “palavra do ano” e viram manchetes mundo afora, inclusive na Internet. O novo mister dos dicionários passou a ser os novos significados que dão às palavras, ou melhor, que reconhecem em meio ao discurso midiático. E, diferentemente do que sempre foi ao longo da história, elegem palavras oni-idiomáticas (essa é nova, quem sabe emplaca no ano que vem).

A ortodoxia ainda não reconhece o verbete viralização, mas bem que vem tentando viralizar há algum tempo. Conseguiu no ano passado, elegendo uma palavra. “Pós-verdade” foi a palavra do ano para o Dicionário Oxford. Uma palavra (já foi locução, porque tem dois vocábulos) que remete à atitude de dar maior valor à própria crença do que aos fatos mais evidentes no presente. O passado e um futuro improvável assumem maior valor do que a verdade visível naquela situação.

Em 2017 o Oxford não mandou bem ao eleger youthquake (terremoto jovem, em inglês) a palavra do ano. Significa “uma mudança cultural, política ou social significante provocada pelas ações ou influência de pessoas jovens”. Parece o junho de 2013 no Brasil, ou o maio de 1968, na França. A expressão teria sido criada há 50 anos por uma editora de uma revista de moda. Mas você já tinha ouvido essa palavra antes!?

Melhor para o Dicionário Collins, que elegeu fake news a palavra do ano. E é aí onde se percebe que significar está mudando de significado. É um outro lado da verdade que só poderia ser conhecido num mundo tão interligado.

QUEM GOSTA DA MENTIRA

A vedete semântica da vez tem um significado muito claro: fake news é notícia falsa. Falsa significa mentira e notícia significa – neste caso! – informação. Sim, pois jornalisticamente, notícia é uma informação que deve agregar uma série de qualidades. A comunicação é o ato mais natural entre humanos mas, para os jornalistas, comunicação tem que ter qualidades específicas. Vendo por esse prisma “notícia falsa” nem existiria, pois sendo falsa, não tem a qualidade essencial de notícia.

Mas isso não interessa. O que interessou no Internet Governance Forum foi o uso do termo fake news para perseguir fontes alternativas na América Latina. Durante o evento, realizado no mês passado na Suíça, um grupo que assumiu o significado de “representantes da sociedade civil da América Latina” questionou o debate em torno das fake news aqui no continente. Eles querem uma nova abordagem, descolada do significado que o termo teria na América do Norte. Por aqui o grande problema seria o “longo histórico de concentração de mídia e manipulação”. Os noticiosos estabelecidos no mercado estariam usando o debate apenas para enfraquecer a “mídia independente” e “abrir espaço para monitoramento, manipulação de conteúdo e censura das plataformas”. Não parece o contrário? Não seria esta a exata intensão dos promotores de fake news, inclusive na América de cima?

“Falso” tem um significado tão claro que até computador entende. Faz parte da lógica matemática, não dá para relativizar. É claro que as nossas instituições atrapalham pelo excesso. Já estão querendo definir fake news em lei brasileira como “conteúdo falso e incompleto”. Tudo indica que, por conta do “incompleto”, que os dicionários não autorizam no caso, vão tentar proteger reputações de suas próprias incompletudes. Mas não se pode tomar esse desespero nas tentativas – ainda não há nada definido a respeito – para facilitar que o “falso” faça parte das liberdades democráticas.

Os exageros aqui no Brasil começaram pela proposta de se criar um “conselho governamental composto, entre outros, por representantes do Exército e da Agência de Inteligência para monitorar ‘fake news’ durante as eleições”, conforme cita o comunicado dos representantes latino americanos. Mas não cabe, do lado inverso, liberar a irresponsabilidade barata.

Publicar é um verbo que está há séculos nos dicionários. Um ato de alcance cada vez maior, que se tornou uma forma de poder nas mãos de poucos. Houve abusos, como em tudo onde o poder se manifesta. Porém, como a prerrogativa de publicar era restrita, foi possível criar formas de coibir os abusos. Agora que publicar é um ato ao alcance de todos, fica difícil estabelecer limites para quem age nas redes sociais com interesses apenas em ações de poder.

MAIS CLARO, IMPOSSÍVEL

Por mais que a gente queira manipular significados, eles têm uma associação difícil de ser refeita. Por exemplo, a fake news que os alternativos – não os “independentes” – defendem, são notícias baseadas em convicções pessoais ou políticas. É, portanto, uma decorrência da pós-verdade! Aquele desejo que Descartes identificou de tentarmos tornar verdade o que queremos e não o que realmente é.

Outro rastro importante: Quem celebrizou fake news foi Donald Trump, o presidente americano que está sendo investigado por custear uma estrutura internacional de… fake news! Um antigo ditado brasileiro diz que “gato ruivo, do que usa, cuida”. Teria sido um presságio sobre a cabeleira do mais célebre editor de fake news que surgiria no mundo?

Trump quer convencer a Justiça Americana de que são fake news que denunciam a maior multinacional fabricante de fake news de que o mundo já teve notícia. Aliás, um empreendimento supostamente sustentado por ele. Se comprovado esse patrocínio, a fragmentação das fontes enganosas vai se evidenciar como a grande estratégia para manter essa indústria da mentira. E essa estratégia foi construída justamente para escapar das responsabilidades sobre o que se afirma.

Nesse formato micro fragmentado, não é à toa que a defesa das fake news se apoie nos defeitos dos grandes, os macro conglomerados da mídia. De fato, têm defeitos, vícios antigos. Mas o que você prefere? Notícias falsas de origem desconhecida, sem rastreabilidade ou notícias eventualmente tendenciosas de origem conhecida?

A resposta a essa pergunta não deve ser nada evidente. O mais provável é que as duas preferências vão aparecer em quantidades bem equilibradas. Isso seria uma prova de mais um fenômeno que o mundo super conectado pode estar revelando: uma grande parte das pessoas tem prazer em consumir notícias falsas. De ouvir algo muito parecido com o que ela gostaria que fosse verdade. Se vier travestido com os mínimos adereços para ser defendido, será suficiente. E a verdade? Ora, “ela é relativa” ou, pelo menos, não tem um histórico de nos trazer sempre alegrias.

Em tempos de interação global a sociedade poderia conhecer melhor a verdade. Se isso não acontece, só pode ser pelo prazer que mentiras podem propiciar. Enganar os outros é ainda altamente lucrativo. Basta prestar atenção, por exemplo, nas afirmações dos advogados que defendem os mais famosos mentirosos. E que ecoam entre as fake news da vida.

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