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O CALENDÁRIO DIGITAL

Pra que serve um calendário no Brasil, além de fazer propaganda? E que a ilustração seja muito bonita porque, de hábito, não devem olhar muito pra calendário. Datas em que alguma coisa acontece por aqui não tem número, tem nome: “véspera”, por exemplo. Os outros dias são todos iguais, pelo menos para quem decide as mudanças. Como a grande massa já se acostumou com essa brincadeira de mal gosto, a data importante para o povão chama-se “agora-não-dá-mais”. Até então nada de reagir aos avisos, a rotina não muda.

Tem uma véspera chegando aí. É pra resolver mudar outra véspera. Deve ser um episódio emocionante porque o suspense é total, ainda ninguém arrisca nenhum palpite. A data é para desligar definitivamente o sinal analógico de TV, só vai ficar TV digital no ar. Sem um set-top box (conversor digital) ou sem um televisor desses mais novos, não vai ser possível assistir à TV no Brasil. A quantidade de interesses conflitantes nessa história é o que mais complica.

Como o Brasil é muito grande o desligamento analógico – tecnicamente, “switch off” – tem que ser feito aos poucos. Foram divididas as regiões e um calendário todo foi elaborado, compensações contratadas, definidos limites e regras. Todas as partes de acordo até que… chegou a véspera. A primeira região a ser desligada é da cidade de Rio Verde, em Goiás e o prazo vence este mês. Pra adiar marcaram uma reunião, que já foi adiada na véspera, porque a decisão só deve sair na última semana. Acho que já vi isso antes.

QUEM PODERIA SUPOR?

As partes interessadas são fortes e poderosas. As operadoras de celulares – tecnicamente, as “teles” – investiram mais de R$ 8 bilhões só para ficarem com a banda de 700MHz, que está ocupada, nas grandes cidades, por algumas emissoras de TV. Outra parte é o Governo, que ficou com quase todo esse dinheiro das teles. Tem também as grandes redes de TV e, não por acaso, o povão, que nesta fase de implantação, ainda não desfruta nem da metade do que a TV digital pode oferecer.

Quem quer o adiamento são emissoras de algumas grandes redes de TV. A digitalização já foi feita nas “cabeças de rede”, que é a principal emissora de cada rede. Mas as repetidoras nos rincões tupiniquins ainda não mudaram a tecnologia. Com o salto do dólar e a crise econômica diminuindo a receita publicitária, muitos garantem que não tem a mínima condição de importar os equipamentos. É que no calendário do Governo, que já é antigo, eles não viram a data “agora-não-dá-mais”. Estavam esperando a véspera.

Se você estava achando falta de algum detalhe nessa história, agora vem a gambiarra – tecnicamente, “proposta alternativa” – apresentada pelo grupo de interessados no adiamento. O desligamento do sinal analógico, por enquanto, seria só nas grandes cidades, onde a banda adquirida pelas teles está ocupada, porque tem muitas emissoras de rádio, celular, emissoras locais de TV, comunicação empresarial, banda larga, etc. São no máximo 500 cidades em todo o Brasil. Nas outras cinco mil e tantas cidades, o analógico só seria desligado em 2023. E o povão? Ah, o povão é legal, se vira.

UM TAPINHA NÃO DÓI

O que facilita a gambiarra são os tipos de problemas que já aparecem na primeira experiência prática, em Rio Verde. Muitos moradores já receberam o conversor digital, a antena, mas ainda não instalaram porque “tem tempo, tá bom assim”. A Anatel – o órgão do governo que desliga o sinal – tem que esperar uma pesquisa que indique 93% dos lares sintonizando o sinal digital. Enquanto isso não acontece, atrasa tudo. As emissoras, que vendem audiência para os anunciantes, não querem que esse público fique sem TV, e defendem a espera.

A Anatel não aceita esse tipo de solução e promete pressionar – tecnicamente, “encher o saco” – dos telespectadores, interferido na transmissão analógica com tarjas escuras tapando parte do vídeo ou tirando o som em parte da programação. É assim que se espera antecipar o dia “agora-não-dá-mais”. Ora, ora, num país onde uma palmada no seu filho pode lhe custar um processo, o governo aceita uma técnica tão antipedagógica como essa!? Parece que, em adulto, um tapinha não dói.

Na última semana, o que trouxe o grande suspense foi o reposicionamento do Ministro André Figueiredo, das Comunicações. Depois de dizer, no começo do mês, que seria “inevitável” o adiamento do switch off em Rio Verde, desta vez afirmou que nada no calendário está alterado até esta quarta-feira. É quando sai a nova pesquisa de sintonia digital em lares de Rio Verde. Ele admite desligar até com 80%, só pra não atrasar o calendário. Estaria mudando definitivamente o Brasil? Nem tanto! O Ministro comparou o calendário do switch off com o da declaração de IR. Disse que tudo acontece na última semana, então também vai tomar as decisões sobre eventuais adiamentos só na última semana. Enfim, a “véspera” entrando oficialmente no calendário nacional.

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