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TECNOLOGIA E QUALIDADE NO BRASIL

“Tchiii.” É assim ou faz “Tsschiiii”?

Tanto faz a grafia da onomatopeia. O assunto é qualidade e todo mundo conhece os timbres dessa curta “sinfonia”, levada à mesa quando se abre uma garrafa. De refrigerante ou cerveja. Esse barulhinho é um indicador de qualidade, principalmente no caso das cervejas, que têm maior valor agregado.

Mas esse é só um, entre tantos outros detalhes. Começa pelo rótulo, depois as pontas dos dedos no gargalo, medindo temperatura. Vem o “tchiii” e ainda vai longe, passa pela boca da garrafa, que não pode estar trincada, o copo americano ou tulipa, se vem gelado ou não, a espuma, … Tudo isso antes de falar do sabor.

É uma das poucas ocasiões em que a força do consumidor brasileiro aparece. Em qualquer dessas fases pode levantar um cartão vermelho e aquela garrafa vai ser substituída, sem mais delongas. No caso de produtos muito mais sofisticados, em que a qualidade pode ser medida de forma mais objetiva, em números, deveria prevalecer mais ainda a força do consumidor.

Os serviços de telecomunicações não acompanham essa lógica. O setor é campeão de reclamações ano após ano e, ao que parece, vai garantir o título por mais um bom tempo.

Está em Consulta Pública a proposta para um RQUAL – Regulamento de Qualidade dos Serviços de Telecomunicações no Brasil, que abrange as operadoras de telefonia fixa, móvel, de TVs por assinatura e de acesso a Internet. A proposta veio da Anatel, a agência reguladora que deve fiscalizar a qualidade desses serviços. Mas as prestadoras não demonstram a mínima boa vontade. Estão batendo firme no anteprojeto, que parece mesmo ter sido feito para apanhar.

O histórico dessa relação, entre reguladora e reguladas, é bem parecido com o de uma mãe muito tolerante com um filho estroina. Ela impõe uma série de censuras que sempre acabam não dando em nada. Só a Oi tem mais de R$ 11 bilhões em multas a serem pagas, sabe-se lá quando.

Com o RQUAL a Anatel pretende “trocar o sistema de punições por um sistema focado no interesse do consumidor” (??). Alega que as multas não deram certo. Por conta disso vai reduzir drasticamente os índices a serem medidos na avalição da qualidade, trocar as avaliações mensais por semestrais e praticamente acabar com as multas. Coisa de mãe, não é!? Mesmo assim as operadoras continuam batendo o pé.

“-OLHA O AVIÃOZINHO…”

Talvez as multas não tenham dado certo porque nunca foram efetivamente cobradas. Ficam pulando de instância em instância, nas esferas administrativas e judiciais, até serem declaradas impagáveis. Ou seriam incobráveis?

Numa comparação com a mais popular das multas, as de trânsito, quando elas atingem os 21 pontos em 12 meses está previsto um breque. Não se espera acumular mais. Toma-se a carta do cidadão, que vai sentar no colo do delegado até repetir de novo todas as normas que tem de seguir. Reciclado, depois de 6 meses, volta ao volante. Se insistir nas barbeiragens, pode ter a carta recolhida definitivamente.

As multas das operadoras não deram em nada até agora. Tentaram TACs, os Termos de Ajuste de Conduta, mas os termos nunca estão “de acordo” para as teles. Então a Anatel está tentando o tal RQUAL, que também não está bom.

Claro e Sky já entraram com contestações muito semelhantes. Ou melhor, “contribuições”, porque o regulamento ainda está em consulta pública. Elas não querem, por exemplo, que eventuais interrupções de serviço estejam entre os índices de qualidade. Para um advogado do tipo que defende réus da Lava Jato, possivelmente faz sentido. Como avaliar a qualidade de uma transmissão que o consumidor nem viu ou ouviu? A compensação automática para o consumidor, pelo tempo que o serviço foi interrompido, também não dá. Afinal, a empresa não teria como contestar o fato judicialmente, cadê a “ampla defesa”?

Ah, outro hábito regulatório brasileiro também está sendo reivindicado. As operadoras de Internet de médio porte querem um tratamento diferenciado. Já a associação das operadoras de pequeno porte quer que os filiados fiquem a salvo desse regulamento. Ora, facilidades fiscais e burocráticas já deveriam ser suficientes para empresas menores. Porém, flexibilizar a qualidade do que é oferecido ao cliente, parece um atestado de que o incentivo fiscal não implicou em vantagem para o cidadão comum.

Tendo como base uma retórica evidentemente “garantista”, as empresas do setor parecem só encontrar problemas no novo regulamento. E, de fato, a proposta apresenta vários pontos questionáveis no que diz respeito à efetiva aplicação. Parece ter sido feita para não ser aplicada.

O QUE SERIA MELHOR?

Num recente parecer do Advogado Carlos Ari Sundfeld, contratado pelo Sinditelebrasil e divulgado no site Teletime, a proposta da Anatel é duramente atacada. Há ressalvas apenas em relação às intenções da agência, que teria demonstrado interesse num modelo de regulação responsiva, ao invés de manter o atual paradigma punitivo.

Surpreende o fato de as teles proporem um clima na relação com a agência, que não é nada do que elas mesmas trazem para a discussão de um anteprojeto, ainda em consulta pública. Criticam com base num formalismo legal rigoroso, da mesma natureza daquele que reclamam, quando a agência pune, ou ameaça faze-lo. Ao final de tantas críticas, a “contribuição” que as teles oferecem como sugestão é um modelo de qualidade baseado na confiança. Cada empresa a ser fiscalizada contrataria uma “entidade privada idônea, de sua livre escolha, para auditar” os serviços e depois apresentaria os dados levantados para a Anatel. Simples assim.

O parecer jurídico se apega à regulação atual, dita “inaplicável” pelo excesso de rigor, para lembrar que à Anatel são permitidas, como sanções, apenas “advertência, multa, suspensão temporária (até aqui, já vimos acontecer), caducidade e declaração de inidoneidade”. Por isso, uma quebra de fidelização contratual, um dos itens propostos no modelo responsivo em discussão, estaria fora da lei. Ou seja, a operadora pode deixar de cumprir o que prometeu, mas a promessa de fidelidade do consumidor precisa ser mantida.

Ora, a lei prevê alguns atalhos para facilitar relações jurídicas, a partir de acordos. Como, por exemplo, o que ocorreu em 2011 entre a associação dos supermercados paulistas e o Procon do estado. O consumidor que encontrar na loja um produto vencido, tem direito de levar para casa um outro, dentro da validade, gratuitamente. Mais prático para o consumidor do que apresentar uma denúncia formal. E muito mais vantajoso para o supermercado, que escapa do rigor do código legal para o caso.

Será que as operadoras preferem as sanções maiores previstas, como a “caducidade”, que equivale a uma cassação da licença? Ou a declaração de inidoneidade?

Ao que parece, o que as operadoras de telecomunicações querem é uma Anatel “mãezona”, suave, para as coisas continuarem mais ou menos como estão. As chances de isso ser mantido, por enquanto, são concretas.

O Brasil ainda não demonstrou capacidade de gerir serviços de alta tecnologia, que movimentam bilhões de reais anualmente. Assim como jamais demonstrou capacidade de moralizar as próprias empresas estatais que administrava. Se fosse diferente, considerando a qualidade média das empresas privadas nesse setor, talvez fosse melhor manter os serviços com estatais eficientes.

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