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INCOMPATIBILIDADES E UM CERTO DESCONFORTO

A briga discreta entre a poltrona e o sofá é antiga, mas pouca gente se deu conta. Na sala de estar parecem viver em completa harmonia, um ambiente aparentemente feito para eles. Mas quem acompanha a história sabe que a poltrona nunca se contentou com a rotina doméstica. Foi para os grandes teatros, assistiu às grandes óperas e viu nascer o cinema, que se tornou o principal negócio da economia americana desde a segunda metade do século passado.

Aliás, foi nesse período que o sofá começou a dar o troco. Com seu jeito sedentário, mais informal, começou a acolher em seus limites a vasilha de pipoca, a lata de cerveja. Os chinelos ficam mais por lá do que em baixo da cama. É que a televisão, ao contrário da poltrona, resolveu encarar de frente a realidade do sofá, levando até ele os grandes clássicos do cinema, os grandes eventos, cada vez com mais qualidade. Esta união muito bem resolvida trouxe frutos como o home theater, o videogame e ameaça conquistar, para a boa e velha sala de estar, o posto de principal foco da indústria audiovisual e de entretenimento. Todo o glamour que a poltrona acomodou durante séculos, entre rendas e cashmere, agora vai desfilar para bermudas e malha de algodão.

SEMPRE ELA, A INTERNET

Mais uma vez, quem desestabilizou a relação foi a Internet. Os serviços de “streaming” parecem ter engolido as bilheterias do planeta. Nos Estados Unidos, estima-se que 30% do tráfego da Internet seja dominado hoje pelo download de séries, documentários e filmes distribuídos pelo Netflix, pioneiro do setor. Aliás, pioneirismo típico americano. Ted Sarandos, idealizador e chefe de conteúdo da empresa, está decidido a testar todos os limites da sua criação, investindo em qualidade. Séries como “House of Cards” e “Orange Is the New Black” foram originalmente criadas para os assinantes do Netflix e hoje disputam os principais prêmios da TV mundial. Até porque os canais a cabo, principais adversários do streaming, se renderam ao nível das produções e negociaram os direitos de exibição com o Netflix. A nova meta da empresa agora é criar duas novas séries por mês.

Não existe nenhum milagre até agora nessa história. Sarandos tem a determinação de produzir com qualidade, aliada a um faturamento de US$ 1,18 bilhão, só em 2013. Os números de 2014 ainda estão sendo fechados, mas devem exceder em 20% esse faturamento. Os estúdios dependem desses empreendedores, determinados e bem sucedidos, para produzirem a arte cinematográfica, cada vez mais fabulosa e cara. Depois disso, pouco importa se vai ser entregue à poltrona ou ao sofá.

ARRISCANDO PROJEÇÕES

O cinema, em suas origens, parece ter seguido alguns paradigmas de outros espetáculos para salas, como o teatro e a ópera. A duração das peças foi se estabilizando em torno de 2 horas. Talvez um limite de conforto para quem está numa poltrona, e também para quem está trabalhando no palco. No cinema, a cena se repete incansavelmente na tela, mas a poltrona ainda deixa alguma coisa quadrada entre os espectadores. Já o sofá, arredonda. Vira pra cá, deita pra lá, cabe mais um, o conforto só aumenta. Foi essa magia nas fronteiras do sofá que fez surgir, no final do século passado, a visualização compulsiva de vídeos, ou “binge watching”. Na época, dominavam os vídeos locados pelas esquinas da vida. Dentre os milhões de locadoras pelo mundo, em Los Gatos, na Califórnia, estava o Netflix. Foi ele que acabou colocando a Internet no trajeto e a distância até as salas de estar ficou a mesma, saindo de uma locadora ou das grandes distribuidoras.

Conhecendo bem a “síndrome”, o Netflix lança as séries com todos os episódios prontos, para agradar tanto o telespectador dito normal como os “binge watching”, que assistem à série inteira num final de semana. Para Sarandos, é uma forma de atender as necessidades dos clientes, da forma mais customizada possível. Nesse caso, ele tem razão em dizer que a forma de assistir à televisão está mudando. Mas o “esquecimento” da programação cultural pela TV, em favor de esportes e jornalismo, pode ser um engano. A TV precisou assumir suas prioridades. O jornalismo sempre foi a identidade de um canal e o esporte nunca vai perder seu lugar, tanto pelo envolvimento inevitável como pelos patrocinadores, que fazem parte do modelo de negócio das emissoras.

Por isso os serviços de “streaming”, com certeza, tendem a complementar a TV, numa convivência que possivelmente vai encontrar um equilíbrio. Assim como o sofá e a poltrona se complementam e sempre vão ser o charme da sua sala de estar.

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