Di-gi-ta-li-zar. De 15 anos para cá o significado dessa palavra para os gestores de jornais impressos americanos foi uma perda de quase 70% dos investimentos em anúncios. Na mesma ordem de grandeza essa perda aconteceu quase no mundo tudo. Os smartphones, bancos eletrônicos, estacionamentos, estradas, …, tinham digitalizado os consumidores em geral, que passaram a absorver bits para tudo. Inclusive quando querem notícias e informações sobre produtos e serviços.
Os fatos, a realidade é o objeto de trabalho cotidiano dos jornais. Eles narraram em tempo real o ritmo crescente da transformação digital. Mas só agora estão descobrindo o que isso significa para um jornal no Século XXI. Um dos mais icônicos jornais do mundo, o The New York Times – ou The Times, como é mais conhecido – começa a ver, em dólares, os efeitos da própria digitalização.
Digitalizar um jornal de mais de 170 anos de tradição impressa vai muito além de interfaces eletrônicas para cada edição. É um processo que envolve em igual medida todo os ativos empresariais, como o parque gráfico, a marca, a força de vendas e também toda a parte editorial. O site da From, uma agência dedicada à transformação digital, traz matéria sobre os principais pontos da digitalização. Dois executivos da empresa, Kinsey Wilson e Tristan Boutros, contaram alguns momentos marcantes de uma mudança pela qual os profissionais da área jamais imaginavam passar. Começou do básico das transformações digitais, algo que pode ser relacionado ao velho ditado, “diga-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. O The Times precisava conhecer seus leitores de forma mais detalhada do que era possível nos tempos da conquista do Oeste americano. Dados de dezenas de milhões de americanos começaram a ser escrutinados até os limites legais. Como acontece em todas as grandes empresas.
Aliás, a transformação digital começa de forma muito semelhante em qualquer grande empresa. Depois de conhecer muito bem os clientes – e até os próprios empregados – todos os setores precisam se convencer de que muita coisa vai mudar na empresa, podendo mudar até a empresa toda. O olhar sobre os próprios produtos fica mais crítico e mais claro. Um clima de confiança precisa imperar nas relações internas para que as artimanhas de cada grupo, as “defesas” e segredos sejam superados para se chegar na mudança necessária. Muitas dessas mudanças vão se materializar em aplicativos para uso dos consumidores, outros para os anunciantes, para o relacionamento mais eficiente entre os setores. No caso do The Times, cujo produto é editorial, o apelo visual e a agilidade e simplicidade na navegação vão ser testados em busca da máxima eficácia. Todas as novas ferramentas precisam ser testadas e aprimoradas com metodologias ágeis, muitas podem ser descartadas para darem lugar a outras soluções que se revelem melhores.
A transformação digital é algo tão holístico que as mudanças podem acontecer por onde menos se espera. No caso do The Times, cerca de 70% dos assinantes atuais só recebem a versão digital. No entanto, todo esse esforço de digitalização da empresa fez com que o produto impresso ganhasse um impulso tão grande, que o torna responsável por 70% da receita global da empresa. Se isso parece um contrassenso, olhe o que vem em seguida: ainda assim, aumentou a consciência de que o futuro está na versão digital. São perceptíveis os sinais de exaustão do produto impresso. Por isso permanece o cuidado com o produto impresso, mas o foco principal está no digital.
A acuidade que os dados permitem na visão de todo o processo permitiu identificar o “como” e o “porquê” do sucesso dos aplicativos de culinária e de palavras cruzadas, por exemplo. Também acusou o grande sucesso do podcast NYT Now, que curiosamente não veio acompanhado de grande retorno comercial. O NYT Now acabou, mas as melhores ideias do produto foram implementadas na edição digital diária. São muitas mudanças, muitas decisões tomadas com assertividade, que aumentam a confiança das equipes.
Se o processo de digitalização de uma empresa acontece de forma parecida com o que se vê em outras, de outros ramos, às vezes ele transparece também um clima monástico. As palavras mais presentes são colaboração, confiança, sinceridade, fraternidade, paciência, humildade e outros apelos típicos do vocabulário bíblico. Para acentuar mais ainda esse estilo, pode-se afirmar que a transformação digital começa em cada uma das pessoas envolvidas no processo. E é importante que comece logo. Afinal ninguém acredita que, nesse mundo em que vivemos, essa transformação algum dia vai parar.