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SELVAGERIA DIGITAL

Existir, para a natureza, tem uma lógica peculiar. Começa por sobreviver diante dos predadores. Mesmo assim, o destino mais feliz que se pode sonhar é fazer parte de uma cadeia alimentar, é conviver com a ameaça permanente que vem não se sabe de onde. A inteligência, por enquanto, foi só uma habilidade a mais que os humanos desenvolveram, cuja principal finalidade é compreender essa lógica. Leis e tratados podem maquia-la, até que um dia aparece de cara limpa, para confirmar a mesma realidade de sempre.

Nos dias eletrônicos, mesmo digitais, há um quê evolutivo no ar, a civilização se diferencia mais ainda da primitiva natureza, e uma brisa serena dá a impressão de que tudo mudou. Deve ser o ar condicionado porque na essência nada mudou, muito pelo contrário. A seleção natural se afirma de forma mais implacável nas regras dos negócios. Por exemplo, a disputa pela sobrevivência no “nada” mais precioso desta Era. Um grande vazio, que servia para crianças empinarem pipas, até que entrou para a vida civil com nome e sobrenome pomposos: espectro eletromagnético. É por onde acontece a radiodifusão, quando “está no ar mais um grande sucesso…”. Está lá o metro quadrado, cúbico ou linear mais precioso à venda nações afora. Serve apenas para deixar as ondas eletromagnéticas de TVs, celulares, rádios AM/FM, comunicação militar, 2G, 3G, 4G, ecos extraterrestres, dentre outras, trafegarem pra lá e pra cá. Os governos assumiram a missão de somente organizar esse trânsito, mais ou menos como sinalizar ruas e avenidas, evitando colisões. O “pedágio” é bilionário. Em 2014, por exemplo, operadoras de telefonia móvel pagaram mais de R$ 8 bilhões ao Governo Federal, para poderem usar novas faixas de frequência. Por isso algumas ondinhas – as piores são as pequenas, tem menos de meio metro mas ainda não dá pra ver – estão inconformadas com o triplex de 6 MHz das TVs terrestres. E é aí onde está plantado um grande confronto.

O IMPOSSÍVEL PODE ACONTECER

A questão não é complicada, mas tem palco e atores desconhecidos para quem não convive de perto com o assunto. TV terrestre é essa mais convencional, a aberta, que precisa de torres para repetir o sinal (analógico ou digital). As outras são TV a cabo, TV por satélite – que pode ser tipo Sky ou daquelas parabólicas maiores – e a IPTV, que vem só pela Internet. A única que usa o espaço mais concorrido do espectro eletromagnético é a TV terrestre, a mais comum nos países mais pobres. No Brasil está a maior audiência de TV terrestre no mundo. Os países ricos já estão bem familiarizados com as outras modalidades, só uma minoria dos habitantes usa a terrestre. Mas são esses países que fabricam os equipamentos de todas essas tecnologias, inclusive da TV aberta digital. São eles também que fabricam as outras tecnologias de radiodifusão, que dão mais dinheiro.

Para padronizar internacionalmente o uso de tecnologias que funcionam com radiodifusão, acontece periodicamente a WRC – World Radiocommunication Conferences. A próxima é a WRC-23, portanto, marcada para o ano de 2023. Simon Fell, diretor da entidade que reúne as emissoras europeias, afirma que o evento “será a última oportunidade de avaliar a viabilidade e a necessidade de existência da TV terrestre”. A preocupação é que o crescimento da telefonia móvel prevaleça e fique com a faixa de frequência da TV terrestre. Os celulares, ou mesmo a TV terrestre podem usar outras faixas de frequência. Mas ficaria mais caro, exigiria mais equipamentos de transmissão. Por isso a faixa onde trafega o sinal de TV é tão concorrida.

A “CAVALARIA” CHEGA PRA LUTAR

Como negócio, ninguém discorda que a TV terrestre é lucrativa. Mas a telefonia móvel é muito mais, tem mais poder. Quem se levantou para enfrentar essa diferença foi a indústria de TV terrestre americana. Ela criou o padrão de TV terrestre ATSC 3.0. Algo verdadeiramente revolucionário, com imagem de ultra definição (4K), transporte do sinal por IP, interatividade e sintonia em movimento. O mais importante é o diferencial que o sistema oferece para a emissora. A publicidade pode ser segmentada, ou seja, vários comerciais diferentes podem ser enviados ao mesmo tempo, num mesmo intervalo, cada um direcionado ao consumidor de seu interesse. Assim, numa casa onde se sabe que existem muitas crianças, pode passar o comercial de um parque temático, enquanto um comercial de lâmina de barbear é exibido, ao mesmo tempo, na casa de um homem adulto. Isso amplia enormemente o mercado publicitário das emissoras abertas.

Essa nova mudança de sistema, que exige troca de todos os equipamentos, por enquanto está sendo pensada nos Estados Unidos como alternativa. Ou seja, só mudará para o novo sistema a emissora que quiser, não será obrigatório. O que se quer evitar é onerar de novo emissoras e telespectadores, que há pouco tempo trocaram tudo, na mudança do analógico para o digital 1.0. Talvez esteja aí a razão de uma estratégia diferente para implantação mais ampla do novo sistema. O ATSC 3.0, previsto para operar nos Estados Unidos daqui a cinco anos, entra em operação na Coréia do Sul no ano que vem. Um consórcio entre emissoras, fabricantes de equipamentos e governo local está bancando a implantação do novo sistema. O governo assumiu o compromisso de doar os conversores a quem precisar. Lá, o novo sistema digital vai substituir por completo o atual. E isso pode aumentar muito o interesse pelo ATSC 3.0 no mundo todo. Além da melhor TV do mundo, os coreanos saem na frente na fabricação do hardware de todo o novo sistema.

Se você ainda não viu “selvageria” nenhuma nesta luta, convém atentar para o outro lado dessa disputa. A TV digital aberta – que é terrestre – é o meio de comunicação mais abrangente do mundo e o mais democrático. É a única alternativa que bilhões de pessoas no planeta dispõem para o acesso ao vídeo. Além da inclusão cultural e jornalística, tem um papel fundamental para o sucesso de políticas públicas de Educação, Saúde, Segurança e em muitas outras áreas. Porém, se uma tecnologia não tornar essa indústria competitiva em dólares, a Era da TV já era.

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